Diário de um Aprendiz de Aventureiro

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Aldenor
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Re: Diário de um Aprendiz de Aventureiro

Mensagem por Aldenor » 11 Fev 2014, 22:02

Cyd, 1404 CE

Cheguei a Valkaria no primeiro dia de Wynn e curti a fossa sozinho. Contei um pouco para Mary Anne, mas sem entrar em detalhes sórdidos que uma criança de treze anos não poderia ouvir. Mas acredito que ela já imaginava. Satoshi continuava inútil e Camille desapareceu. Cheguei a visitar alguns lugares que a gente sempre se esbarrava, mas não a encontrei. Queria desesperadamente vê-la. Queria abraçá-la e contar tudo o que tinha acontecido.

Não que eu não tivesse amigos. Apesar de minha relação com eles tivesse deteriorado, eu podia ainda conversar sobre bobagens cotidianas. Mas jamais me abrir a ponto de contar que havia terminado o relacionamento com Marina. Falar para meus pais era tão absurdo que nem cogitei na ideia. Satoshi estava inútil e não o via como alguém confiável, de qualquer maneira. Ele havia me traído pela milésima vez ao contar para meus pais dos meus treinos secretos.

Minha irmã quebrava um galho, mas ela era boa para falar sobre minha relação com os treinos secretos e com o que eu queria fazer da minha vida. Ela não entendia nada sobre relacionamentos. Precisava de Camille, desesperadamente precisava dela. Nessa época, ela já tinha seus quinze anos, portanto não era mais uma criança. Na minha cabeça, quatorze anos era ser criança, quinze anos era ser adolescente. Na prática, Camille já possuía bastante maturidade, ainda mais se comparada a mim, um poço de infantilidade e insegurança.

Passei o mês procurando por ela e sofrendo calado à noite no meu quarto. As aulas começaram no final do mês. Eram aulas preparatórias para o exame que viria ao final do ano para eu entrar na Universidade Imperial. Mas eu não tinha clima para isso. Mesmo depois de anunciar a todos que seria herói de novo, minha mãe conseguiu me convencer de continuar os estudos para entrar na Universidade.

- Conhecimento nunca é demais. Poderá te ajudar na vida de aventuras, meu filho.

Ela dizia isso com frequência para me animar. Mas eu sabia que ela, no fundo, ainda tinha esperanças que eu desistisse de ser um herói.

O mês de Cyd começou, fui às primeiras aulas e conheci muitas pessoas novas. Logo fiz amizades mais interessantes. Como era uma turma especial, preparatória para a Universidade Imperial, os estudantes não eram tão fúteis ou superficiais, preocupados apenas com uma educação básica para poder lidar com os negócios da família. Ali tinha gente que queria se embrenhar na academia do conhecimento, havia devotos de Tanna-Toh e outras pessoas que queriam ser pesquisadores de várias áreas. Isso tudo porque o exame da Universidade Imperial era extremamente difícil.

Na segunda semana do terceiro mês do ano e último do verão, eu reencontrei Camille me esperando na saída do colégio.

Foi um misto de emoções. Saudades, raiva por ela ter sumido e até mesmo as dores de ter terminado o namoro com Marina voltaram, pois eu precisava ver Camille para contar tudo. Depois de nos cumprimentarmos, desabafei. Chorei, até. Levei a tarde inteira para falar.

Camille estava com cabelos mais ondulados e um pouco mais cumpridos. Havia uma presilha bonita que fazia sua franja não ocultar todo seu rosto. Ela vestia um típico traje de uma escola qualquer. Camiseta com colete azul escuro, saias também azuis e sapatos simples com meias longas quase até os joelhos. Parecia ainda uma criança, mas me confortou como uma adulta.

- Você fez o certo. Demoraram muito para perceber que estavam se enganando. As coisas que os mantinham juntos não eram suficiente e vocês forçaram o relacionamento por, talvez, comodidade. Acontece. – Ela disse com sabedoria de adulta.

- Pode ser sim. Mas já parece que faz uma década que namorei com ela.

- Significa que você superou tudo. Só precisava mesmo desabafar. E fico feliz que tenha pensado em mim para isso. – Ela disse, corando um pouco o rosto.

- Claro. Eu pensei em você o tempo todo. No primeiro momento que terminei com Marina, tua imagem me veio à cabeça. Mas você desapareceu!

- Viajei com minhas irmãs para Villent. Mas agora voltei. – Ela disse, virando o rosto. Notei que ela tinha ficado cada vez mais vermelha depois que eu disse ter pensado nela o tempo todo.

Foi aí que eu percebi o significado daquelas palavras. Sem perceber, havia dado um passo para entender meus sentimentos. Agora estava muito claro para mim. Peguei a mão de Camille imediatamente. Ela se sobressaltou.

- O que é isso? – Essa pergunta quase me afastou. Mas mantive a compostura. Já havia feito isso milhares de vezes.

- Camille, eu acho que estou apaixonado por você. – Foi uma confissão muito difícil de fazer, mas depois eu me senti bastante leve. E ver a reação dela me deu mais confiança.

Camille ficou coradíssima, desviou o olhar, ficou agitada. Mas manteve sua mão presa à minha. Foi ali que eu vi que ela correspondia meu sentimento. Na verdade, uma ponta de mim sempre soube. Ver aquela garota reagindo assim me fez ver como ela era jovem. Talvez eu fosse o primeiro rapaz a se declarar assim para ela. Então, eu a puxei mais para perto e a abracei. Ela enterrou seu rosto no meu peito e segurou meus braços. Senti meu coração acelerar.

E nos beijamos.
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Foi assim que começamos a namorar.

O resto do mês foi muito interessante e divertido. Camille e eu tínhamos gostos parecidos e até fomos à Arena Imperial. Ela gostava do lutador Estrela Solitária, um rival do Rubro Negro e as brincadeiras e gozações que eu fazia a deixavam um pouco brava, mas mesmo assim era divertido. Nossa relação mudou pouco, apenas agora andávamos de mãos dadas e nos beijávamos.

Na verdade, eu sequer a apresentei para minha família ou amigos por um tempo. É verdade que ela me buscava na escola, mas nunca tive a iniciativa de levá-la aos meus amigos que saiam comigo pelos portões. Ela sempre esperava em um banco, do lado de fora, debaixo de uma árvore. Eu me despedia dos amigos e ia encontrá-la. Quando perguntado, eu falava que era minha namorada. Alguns fizeram brincadeiras, pois Camille parecia uma criancinha com aquele uniforme, mas nada que me incomodasse de verdade.

- Quando vou conhecer seus pais? - Ela perguntou certa vez.

- Qual a importância disso? – Eu respondi.

- Assim a gente poderia passar um tempo na sua casa. Eu não conheço o seu quarto e nem sua irmã. Ela deve ser legal para conseguir te aturar. – Ela disse rindo.

- Minha casa é chata. Eu prefiro andar pelas ruas de Valkaria. Temos tanta coisa interessante para ver juntos – Respondi, mas não entendi a mim mesmo. Qual era o problema de levá-la para minha casa?

Camille pareceu um pouco decepcionada com minha resposta, mas logo esqueceu. No final do mês fomos visitar pela milésima vez o velho tamuraniano para nos certificar de nossa maior teoria. Acreditávamos que Satoshi Yamada não gostava de sentir calor e, por isso, ele era imprestável durante os três meses de verão. Ele ficava bêbado o dia todo e vestia apenas uma tanga para cobrir suas vergonhas. Ou às vezes trajava seu quimono tradicional com uma armadura e balançava sua katana para inimigos desconhecidos (e invisíveis).

Mas naquele dia final de Cyd ele estava de roupas normais. O calor já estava abrandando, pois o equinócio de outono já estava chegando. Ele nos olhou com sorrisinhos, como se nada tivesse acontecido, como se tivéssemos nos falado no dia anterior.

- Boa noite, jovens amiguinhos. Vamos começar o treinamento. Peguem cada um uma espada e pratiquem contra aqueles dois bonecos.

Trocamos olhares com sorrisos debochados. Era melhor não tentar entender o que havia acontecido e aceitar que ele era mesmo estranho. De espadas na mão, começamos a praticar. Eu me movimentava bem mais que Camille, usando as pernas com rapidez. Ela era mais rápida ao desferir golpes. Trocamos alguns elogios sarcásticos das habilidades um do outro. Depois rimos um pouco juntos. Paramos por um minuto para trocar um beijo. E Satoshi apareceu subitamente atrás de nós.

- O que foi isso?

- Estamos namorando, Satoshi. – Eu disse enquanto acariciava os cabelos de Camille.

- Isso não é bom.

Minha cara fechou indignada na hora.

- Como assim, velho?

- Distração. Não estarão concentrados para aprenderem o kenjustu. E não bastará apenas separá-los em dias diferentes para treinar, pois irão sentir saudades como dois pombinhos apaixonados. – Essa palavra tamuraniana, o “kenjutsu” significava “caminho da espada” ou algo assim. Era um conjunto de técnicas tamuranianas de luta com a katana. Satoshi estava obviamente consternado.

- Nós não vamos nos distrair. E estamos aprendendo muito bem, tá? – Disse Camille mostrando a língua pra ele.

- É mesmo? Então, vamos fazer um teste.

O velho pegou outra espada de madeira e posicionou-se para o combate. Fez um gesto com a mão nos chamando para a luta. Estranhei aquela atitude bastante infantil de Satoshi. Mas considerei que ele era um velho louco, então não era para fazer sentido mesmo. Corri antes de Camille e desferi o meu primeiro e único golpe. O velho deu um passo para o lado desviando totalmente. Eu ia virar o corpo para continuar o movimento e tentar atingi-lo, mas vi Camille surgir do outro lado. O velho aparou o golpe e usou a própria força dela para jogá-la sobre mim.

Caímos juntos.

- Como eu previa.

- Isso não prova nada, a não ser que você é um samurai experiente e nós aprendizes. – Reclamei aos berros, enquanto me levantava.

- É isso aí, Satoshi. Não tente misturar as coisas. – Camille disse mais calma, levantando-se em seguida. Ela ia preparar para continuar a luta, mas eu coloquei a mão em seu ombro.

- Velho, queremos ficar juntos e se o teu treinamento for um obstáculo, acho que isso será um enorme problema. – Eu disse confiante. Estava disposto a ficar com Camille, bem mais do que treinar com espadas. Agora que eu havia encontrado uma “alma gêmea”, não seria um velho oriental que ficaria em meu caminho. Olhei para ela buscando apoio e encontrei algumas dúvidas. Quando eu franzi o cenho, ficando inseguro com aquela reação dela, Camille decidiu apoiar.

- É isso aí. Assim vamos acabar indo embora. – Ela disse entre gaguejos. Aquela incerteza foi muito dura para mim. A ideia de preferir aprender a lutar mais que ficar comigo era insuportável. Eu joguei a espada de madeira no chão e simplesmente fui embora. Uma atitude lamentável, eu sei, mas eu pensava daquela forma na época. Eu poderia ter ficado, discutido a situação, mas não era um adulto de verdade, apesar da idade. Camille me seguiu e tentou pedir para que voltássemos a treinar com Satoshi.

- Vamos voltar amanhã. Relaxa que eu não desisto fácil assim das coisas. – Mas eu queria desistir naquela hora mesmo.

Voltamos no dia seguinte e Satoshi estava carrancudo. Separou nossos treinos em cantos diferentes de seu pátio. Eu corria com peso nas pernas e nos braços sobre troncos finos de madeira sobre o pequeno lago, enquanto equilibrava dois baldes d’água presos por uma haste comprida. Camille continuava o treinamento com a espada de madeira. Não gostei de ter sido “rebaixado” aos treinos físicos e ela continuava com a parte divertida. Alguns dias depois, já no final do mês, Camille recebeu uma katana lindíssima com cabo negro e a ponta no formato de um dragão dourado.

- Está na hora de você se acostumar com uma katana de verdade.

Fiquei extremamente irritado.

- Ei, e eu? Eu estava indo bem com a espada de madeira! Por que voltei a ficar correndo sobre esses troncos e carregando peso? Já estou bem mais forte e rápido. Quero treinar com uma katana também!

- Eu errei. Você não estava preparado. Vi pelo movimento das pernas e dos braços. Muito lentos. Camille tem o dom. Você, não.

Meus olhos umedeceram instantaneamente. Era tudo o que eu mais temia. Ser inapto para lutar. Não ter talento, não conseguir atingir meu sonho de ser um herói.

- Mas com treino você pode se tornar um espadachim razoável, não se preocupe.

Satoshi era um velho louco, devoto de Nimb e tinha seus momentos de maníaco depressivo. Às vezes era muito alegre, às vezes reservado, às vezes carrancudo, e sempre com humor um pouco ácido e sem muitas travas na língua. Mas aquilo era demais. Fui relegado a apenas uma pessoa comum esforçada.

“Camille tem o dom. Você, não”.

Doía na alma.

O mês acabou com minha autoestima arrasada. Eu continuava indo aos treinos e continuava a praticar com os pesos. Camille continuava a praticar com espadas de madeira e, ao final do treino, usava a katana. Uma belíssima lâmina afiada levemente curvada, perfeita para cortes precisos.

“Camille tem o dom. Você, não”.

Era o que eu pensava todos os dias do final do verão de 1404. E isso começou a afetar nossa relação. De alguma forma, tinha bastante inveja de Camille.
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