(Conto) "Força e Fraqueza"

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kold
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(Conto) "Força e Fraqueza"

Mensagem por kold » 31 Jan 2020, 12:30

Escrevi esse conto para o Crônicas da tormenta 3, e embora não tenha sido selecionado, acredito que é divertido e interessante o suficiente pra dividir com vocês. É uma aventura cheia de ação, comédia e alguns momentos dramáticos, com um protagonista inspirado em um recorrente personagem de jogo meu. Críticas construtivas serão muito bem vindas, então pode falar o que gostou ou não sem hesitar.

"Força e Fraqueza"


— Tem que ter uma elfa — declarou, resoluto. — Um harém sem elfa, é um harém incompleto.

O cão latiu em resposta, como se dando sua opinião.

— Tá, uma qareen é importante, até pra dar um toque meio mágico a coisa toda — prosseguiu, dialogando com o animal em que estava montado. — Só que o grande problema mesmo são as humanas: tem de tanto tipo... vai dar muito trabalho ter todas. O que acha?

Novo latido, duplo dessa vez. Parecia ter muito a dizer.

— Safadinho, você. É claro que vai ter seu harém. Prometo cachorras de todos os cantos de Arton.

E o animal abanou o rabo, parecendo satisfeito.

Kold era uma figura exótica, diriam os mais educados. Afinal, não era todo dia que se via alguém portando uma espada com a sua largura e quase o dobro da altura. A armadura de couro batido, capa vermelha e elmo aberto com chifres também ajudavam no estranhamento, vale dizer. Mas indiferente a tudo isso, ele seguia pela estrada de terra batida, sobre os lombos de um grande cão de pelo curto e negro. As orelhas do animal eram largas e caídas como as bochechas, e claro, usava um capacete de chifres como o dele.

Logo atrás, um trobo: animal meio-ave, meio-boi, com dezenas de quilos de equipamento amarrado as costas. Um bicho manso, servil e típico. O extremo oposto do dono.

— Fala, amiguinho! — cumprimentou o gnoll, saído do nada. Sua cabeça de hiena com um largo sorriso de presas. Seu corpo peludo, alto e recurvado, apoiado em uma lança e bloqueando o caminho. — Tem como descolar um rango pra um companheiro esfomeado? Talvez também uma moeda, pra um companheiro necessitado?

Kold deteve o avanço do cão, o trobo parando logo depois. Olhou em volta: aquele trecho da estrada era estreito e cercado por altas encostas, com grandes pedras e mato alto o suficiente para esconder uma matilha inteira daquelas criaturas. Com uma mão segurava o cabo da comprida arma apoiada no ombro, com a outra coçou o queixo, e por fim respondeu:

— Tenho umas sobras de osso de galinha. — E acariciou o cão, que farejava o gnoll. — Se quiser dividir com teus amigos bandidos, podem roer os restos babados que meu cachorro deixou.

O gnoll deu um sorriso forçado, apertando os olhos com as pontas dos dedos, antes de responder.

— Não devia ter mandado essa, carinha. Tá sabendo demais, e falando demais.

O som do farfalhar das folhas foi seguido pelo de risos. E esses, pelo de passos descendo as encostas. Em um minuto haviam três outros gnolls armados de lanças rodeando o viajante, enquanto outros quatro se revelavam em pontos altos e estratégicos, dois de cada lado. Esses portavam várias pequenas lanças próprias para arremesso, conhecidas como azagaias. Ao contrário do primeiro, que usava roupas leves e comuns de aldeão, os outros vestiam partes desencontradas de armaduras de couro e metal, além de adereços de ossos e folhas. Em comum, compartilhavam das manchas por todo pelo, e sorrisos ameaçadores.

O cão rosnou, provocando o riso generalizado daqueles homens-hiena. Um som tão cômico quanto intimidador. Kold riu também, imitando o grupo, sem se mostrar nem um pouco receoso por ser cercado pelo bando. O gnoll que se apresentou originalmente o encarou com estranheza estampada na face, mas cobiça refletida nos olhos:

— Seguinte, carinha. Eu ia ser legal contigo, levando só o trobo com a carga, teu ouro e essa espada irada que tu tá carregando aí. Até pra te aliviar do peso de algo tão grande — disse ele, girando a lança como quem demonstra habilidade. — Mas como tu quis zoar, agora só sai daqui de calça. E se tentar fazer gracinha, a gente mata o cachorro e te vende como escravo pra algum minotauro que goste de halflings com carinha de criança que nem essa tua.

É, Kold era um halfling, e todos sabiam como esse povo era. Pacato, sorridente, amante de boa comida, fumo e conforto. Tão fracos quanto ágeis, e apenas perigosos quando portando armas como adagas, bestas e outras próprias para o seu pequeno tamanho. E se tinha uma coisa que aquela espada nos ombros do viajante não era, era leve ou apropriada ao tamanho dele. Era nada menos que uma espada taúrica! Arma pesada e brutal, empunhada apenas por homens muito fortes, e tornada famosa pelas mãos de campeões minotauros em seu próprio império. Talvez por isso o gnoll arriscou chegar tão perto, por saber que um halfling precisaria de ao menos as duas mãos para mover uma coisa daquele tamanho, e que no lento e sofrido movimento necessário para o golpe, a ponta da lança dele entraria na pele frágil do pequenino. Era uma dedução plausível, mas por isso mesmo, errada. Nada com relação ao Kold era muito plausível.

O cão mordeu rápido e forte, pegando o gnoll pelo membro na calça, após um comando de Kold que ele sequer percebeu. O ladrão gritou, rilhando os dentes afiados.

— Seu bosta... — o sofrido gnoll resmungou, preparando-se para espetar a lança no halfling. —... vai virar adubo pra...

Não houve tempo de terminar a frase, pois Kold terminou com ele antes. A espada taúrica desceu com velocidade improvável para uma criatura daquele tamanho, e com força suficiente para se encravar entre o ombro e pescoço do inimigo. A lança caiu, junto ao corpo de um gnoll que levava para o reino dos deuses uma importante lição sobre valorizar exceções à regra.

— Com uma mão só é difícil, sai desengonçado e com pouca força — reclamou ele, ao puxar com esforço a espada do corpo adversário.

Por fim levantou a arma, espirrando sangue sobre si e um dos inimigos. Encarou os três gnolls que o rodeavam, de olhares arregalados e bocas abertas, dizendo:

— Sete homens-cadela, certo? Pelo jeito vou ter que fazer vocês latirem alto, pra atrair os outros comparsas. O contrato falou de dez.

***

— Kold "Mata-dragão"... sério, mesmo? — perguntou o líder da vila, pela segunda vez, ao seu conselheiro.

— Desculpe, senhor Rob, mas foi só o que achei disponível na região. Apesar do tamanho e da aparência, me juraram que o sujeitinho é forte.

Era um homem alto e corpulento, porém dependente de uma muleta, pela falta de metade da perna esquerda. Parecia irritado com o velho magricelo que lhe trouxe um halfling e um cão, para resolver um problema que dois cavaleiros de armadura completa em seus corcéis falharam em resolver. Ainda mais irritado por hospedá-lo e alimentá-lo, possivelmente considerando tudo dinheiro perdido. Kold ouvia a discussão enquanto devorava o que podia daquele suculento cozido de galinha, temperado ao próprio sangue do animal. Disseram ser a especialidade daquela vila, o prato que rendeu ao lugar o nome de "Galinha Vermelha".

Além do dono da casa e seu conselheiro, as três filhas dele olhavam curiosas para o halfling, com idades variando entre quinze e vinte anos. Todas com cabelos castanhos e pele morena, como do pai. A mais velha o servindo, enquanto as outras cochichavam e riam.

— Aproveita bem, amigão, não é toda hora que tem carne gostosa assim dando sopa — disse ele, jogando pedaços gordos para o cachorro ao seu lado, mas sorrindo maldosamente para aquela que o servia.

— Sou casada, tenha respeito — declarou a jovem, corando como os tomates recheados que serviu, e se afastando sob os risos de suas irmãs mais novas.

Ouvindo ou não a gracinha, o líder parou diante de Kold. Encarava com olhos severos o halfling secando bom vinho, até finalmente se pronunciar:

— Me chamo Rob, filho de Ruber. Servi por anos no exército do reinado, e nunca vi um halfling guerreiro.

— E eu me chamo Kold, ando por aí faz tempo, e nunca vi um aleijado líder de vila — devolveu ele, jogando um osso que quicou até o sujeito. — Arton é grande, tio.

— Minha perda é motivo de orgulho, moleque! — berrou o homem, sua face vermelha de raiva. — Perdi uma perna combatendo malditos puristas! Gente disposta a exterminar halflings como você!

Kold se limitou a arrotar em resposta. A garota mais nova não conseguiu prender a risada, logo desviando do olhar furioso do pai. Vendo que o homem ainda esperava por algum agradecimento dele, acabou por dizer o que pensava:

— Eu sei me defender, coisa que os halflings deviam aprender a fazer. Raça fraca e covarde, sempre precisando da proteção dos mais fortes. Tá bom que é dever dos fortes proteger os fracos, como eu protegendo a vila de vocês. Mas... se eles continuarem assim, merecem mesmo o extermínio. — Kold coçou o pé peludo, tirando do dedão uma pequena farpa. — O halfling de hoje, é o elfo de amanhã.

Todos pareciam assombrados com suas palavras, que ele julgava sábias. Os elfos eram páreas que perderam tudo... era pesado profetizar para os simpáticos halflings o mesmo destino. O homem respirou fundo, olhando a bela espada sobre a mesa. Com a mão livre levantou a grande e pesada arma, como quem duvidasse da capacidade do halfling de lutar com aquilo.

— Uma espada de minotauros, e de ótima qualidade. Usa isso pra matar dragões? — questionou, fazendo sua filha voltar a rir.

— É meu trabalho. Eu mato, ele come — disse kold, apontando para o cão, que latiu em resposta. — Kold Mata-dragão, e seu aliado, Devorador de dragões.

Dessa vez todos riram, mesmo o líder da vila. Por fim se sentou, bebendo do vinho e o entregando a filha mais velha, que levou a garrafa para longe do guloso visitante. Viu o enorme cão lambendo os dedos engordurados do halfling, e ao que pareceu, resolveu ser mais direto:

— Não somos indefesos, garoto. Das várias vilas a caminho de Valkaria, só perdemos em tamanho e importância pra Ridembarr, isso porque de lá já dá pra ver a estátua da cidade. Sempre tivemos homens de fibra pra defender nossa gente, o problema é que o exército do reinado levou todos. Deheon está em guerra, e só as mulheres, crianças, velhos ou incapacitados como eu não vão pra ela.

— Tá certo. Vocês ficaram fracos pra tornar o exército forte, dá pra respeitar isso — afirmou ele.

— São dez gnolls, garoto. O bando que tem atacado em nossas estradas há meses. Ladrões covardes e desonrados, mas espertos e organizados. Está dizendo que só você dá conta?

— Gnolls são fracos. Pra quem mata um dragão, um gnoll, dez gnolls, valem nem a bosta de um.

A mais velha fez o sinal da balança do deus da justiça, talvez pela palavra feia dele a mesa. Kold riu, barriga cheia e confiança a mil. Gnolls eram fracos, e ele precisava mesmo usar a espada.

***

A lança do primeiro raspou no elmo, mas sem precisão ou força para atravessá-lo. Kold armou um contra-ataque, mas desistiu ao ter de desviar de outras duas lanças, agachando o corpo até ficar colado ao cão. Um movimento da espada por fim lhe ganhou espaço, os inimigos se afastando daquela arma capaz de lhes partir ao meio.

Os gnolls se comunicavam por gestos e rosnados, enquanto kold só queria que sua espada se comunicasse com o ventre deles. Risadas bizarras ecoavam por todo cenário, respondidas por latidos e então pelo próprio halfling:

— Vocês precisam de um adestrador.

Como já esperava, os ataques do alto vieram. As azagaias miravam nele e no cão, mas seus reflexos os livraram dos ataques vindos de ambos os lados. Duas delas se chocando contra a espada que usou de escudo. Era difícil lutar contra tantos e de tantos lugares, mas de certa forma isso o animava. Sabia que também não era fácil para os bandidos acertarem alguém pequeno sobre um cão em movimento, ainda com uma espada capaz de lhe servir de cobertura contra as hastes assassinas. E que então, era a chance dele.

Kold avançou em uma investida feroz contra o gnoll alaranjado que tentou atravessar seu crânio, os olhos caninos fitando com terror aquele pequeno guerreiro a lhe abrir o tronco. Sangue e vísceras jorraram, enquanto Kold gritava:

— Por Tauron!

— Matem o halfling maluco! — gritou um dos gnolls ainda próximos, olhando para os companheiros de cima.

Azagaias voaram novamente em forma de resposta, com Kold caindo do cão, ao ser acertado por uma delas.

— Bosta! — resmungou, vendo do chão seu parceiro seguir ao ataque sem ele. — Cadelas desgraçadas, o Devorador vai encarcar vocês, a se vai.

Foi um corte superficial na perna, mas que o fez se desequilibrar. Kold viu o Devorador de dragões agarrando um dos gnolls pelo pé, até ser enxotado por ele, usando a lança para feri-lo. Ele ganiu, recuando até o jovem halfling, que em um movimento montou de volta.

Kold avançou, mas não a tempo de impedir que os malditos subissem cada lado das encostas e, impulsionados pelas lanças, saíssem do seu alcance. Sua espada acertou a terra, arrancando mato alto e risadas de seus oponentes. Eles tinham plena vantagem de novo, pois não havia como o halfling chegar a qualquer um deles sem sair do cão e escalar, se expondo a ataques que poderiam derrubá-lo.

— Cabô, pequenino — disse a gnoll, com azagaia apontada para ele. — Você matou dois, mas somos muitos. Muita burrice sua encarar a gente vindo sozinho.

Risadas ecoaram das bocas daquele bando, novamente imitadas pelo guerreiro.

— Pequeno, você deve ser mesmo uma cria de Nimb! — a mesma gnoll cinzenta comentou, parecendo confusa.

— Sou cria de Tauron, deus da força — respondeu ele, categórico. — E só pra saber, eu nem vim sozinho. O Devorador de dragões tá comigo.

Eles gargalharam dessa vez, alguns mal se aguentando de pé. Mas logo se calaram. Uma explosão atrás da gnoll a arremessou ao chão, uma queda de mais de três metros que terminou diante do matador de dragões. Ela gemeu de dor, enquanto seus companheiros olhavam confusos para aquele ataque inesperado. Olhou visivelmente assustada enquanto a espada dele descia sobre sua cabeça. Sem corte, pois Kold a utilizou como um pedaço largo e pesado de metal, apenas para machucar. Não gostava de matar mulheres, não importava a raça. Ele esperava não ter matado, mas era difícil ter certeza.

— Esqueci de dizer, mas tem mais uma pessoa com a gente.

***

— Está subestimando demais os inimigos, pra quem nunca enfrentou um gnoll — disse ela, ao voltar à mesa de refeições.

O líder da vila a encarou com surpresa, pois devia achar que Kold agia sozinho. Típico, ela pensou.

— Sua companheira? — perguntou ele, para Kold.

— Petúnia é minha protegida — respondeu o debochado halfling, sorrindo para ela.

— Esqueceu, senhor? Falei que ele tinha uma pequena ajudante, antes do senhor travar no nome — comentou o velho que os trouxe até lá, com a promessa de uma recompensa justa por um trabalho difícil.

— Somos parceiros — ela corrigiu.

O homem a rodeava, visivelmente curioso quanto ao que se escondia sob aquela capa com capuz, cuja altura era ainda menor que a de Kold. Quando ele se inclinou para encarar sua face, porém, Petúnia cutucou seu nariz com a unha pontuda... fazendo o homem mudar de ideia.

— Quero saber se os gnolls tem um líder — questionou ela, pousando a bolsa cheia de rolos com pergaminhos na mesa. — Temos que saber o que vamos enfrentar.

Após um resmungo, ele se conformou em responder:

— Sabemos que o bando têm um líder, mas nenhum dos nossos viu. O sábio da vila diz que as vezes gnolls são liderados por fêmeas, mas não faço ideia — respondeu ele, enquanto Kold ria da informação. — Mas que monte de livro é esse que você tá levando da minha casa?

— Deixa, papai. Depois de comer ela quis saber se tinha livros e pergaminhos que pudesse levar, já descontando da recompensa — explicou a filha do meio, carregando os grossos livros empoeirados que ela pediu. — É bom, que a gente se livra dessas tralhas sobre cavalaria, estudo de trobos e outras coisas inúteis que o vovô deixou. Fora os pergaminhos com poesia malfeita, do meu ex-noivo que se achava bardo. Que Khalmyr me livre do traste!

— A força do Kold é a espada, a minha é isso aqui — Petúnia afirmou, segurando firmemente sua bolsa. — A gente vai receber por cada gnoll, e um extra pelo chefe.

O homem concordou, com o sorriso sarcástico de quem previa suas mortes. Kold caminhou até as três jovens, como quem as examinasse, antes de dizer:

— Também quero uma das suas filhas. O senhor tem três, uma pra meu harém não vai fazer falta.

Ele falava novamente sobre haréns, como se fosse um minotauro escravagista. O olhar furioso do dono da casa caia sobre Kold, enquanto Petúnia levava a mão a face, se perguntando como aguentava aquilo.

***

A gnoll caiu, acertada de surpresa pelas setas de energia mística, como ela sabia que cairia. Petúnia foi esperta, avançando sorrateiramente até seus inimigos, enquanto Kold fazia seu show no meio deles. Seria mais fácil se os desgraçados não tivessem um faro tão bom, mas ela sabia como ser perigosa sem chegar perto. O problema é que o ataque colocou dois deles em seu encalço, com armas em mãos, farejando o chão e de orelhas atentas.

O que chutou a direção certa era justo o maior deles. Com várias vezes o seu tamanho, ele achou o rastro da garota. Perto, cada vez mais perto. Não estivesse a encapuzada sob o véu da invisibilidade, ele já teria arrancado sua cabeça do pescoço, com aquela bocarra cheia de dentes.

— Aparece e vou ser legal — disse o gnoll, diplomático. — A gente sabe ser bonzinho com quem pede arrego.

Podia até ser verdade, ela pensou. Gnolls eram conhecidos por sempre aceitarem a rendição de inimigos. Igualmente por se renderem, quando diante da morte ou grande desvantagem. Era algo a se pensar, se tudo mais desse errado, refletiu.

Ele já farejava acima dela, com a lança lhe revelando não ter nada da altura de seu joelho para cima. Uma pena para ele que quando agachada, Petúnia fosse ainda menor que isso.

— Sem rendições hoje — disse ela, após encravar o punhal no ventre exposto do ladrão. — Olho por olho, dente por dente.

O gnoll caiu sobre um dos joelhos, levando a mão ao ferimento e rosnando para sua inimiga agora visível. Atacou com uma mordida voraz, que por pouco não abocanhou a face da jovem, puxando o capuz no lugar da carne. A resposta foi igual. Uma mordida de Petúnia, direto no pescoço exposto do inimigo. Dentes menores, boca menor, mais naquele ponto, foi o suficiente.

A pequena cuspiu a carne e o sangue do inimigo, junto a uma ou duas pulgas. Limpou com sua mão de garras pontudas seu focinho reptiliano e alongado, enquanto via a vida se apagar daqueles olhos surpresos.

— Aaahhh não, ai já é sacanagem! — exclamou o outro perseguidor, ao ver o cadáver do aliado e sua assassina. — Perder gnolls pra um halfling já é escroto, mas pra uma kobold? Ai já é piada dos deuses!

Kobold, era isso que ela era. Uma pequena e jovem kobold, de pele vermelha e grandes olhos reptilianos, fugindo do inimigo enquanto carregava sua bolsa de pergaminhos com um pesado livro. Kobold, a mais insignificante das raças, formada por criaturinhas covardes, fracas e frágeis, em quem ninguém confia, e que ninguém teme. Petúnia era uma kobold, uma kobold bem diferente. "Exótica", ela gostava de dizer.

— Volta aqui, "pulga de dragão"! — gritou o gnoll baixinho e corcunda, errando a azagaia por pouco.

Ela era bem rápida, e mesmo o inimigo tendo boa mira, era um alvo difícil. Petúnia avançou de uma rocha a outra, correndo, saltando e deslizando pelo caminho íngreme, quando isso se fez necessário. O pé deslizou por duas vezes, mas suas garras e cauda impediram que caísse.

— São mesmo um bando de pulguentos covardes... parem de fugir! — Era o kold, tentando inutilmente alcançar um dos gnolls de lança que fugiram dele.

Devorador atacava o fugitivo inimigo do lado oposto, mas tanto um quanto o outro eram afastados pelas lanças, sem conseguir avançar. Kold estava bastante sujo e ralado, sinal de que fora derrubado bem mais de uma vez. Ela pensou em ajudar, mas então ouviu outra azagaia zunir, dessa vez perfurando sua carne. Petúnia gemeu baixinho, rilhou os dentes e sentiu o sangue escorrer por sua pele escamosa. Com esforço, arrancou a coisa de suas costas. O desgraçado riu alto, feliz por finalmente acertá-la, e já pegava outra das duas que ainda levava as costas, pronto pra diminuir distância e fazer mira.

Petúnia sentiu dor, sentiu fraqueza... mas precisava ser forte. Pegou o pergaminho da bolsa, que disseram ter versos ruins. Não abriu ou leu. Não precisava ler. Pergaminhos e livros eram sua força, mas não da forma que outros suporiam.

— "Fogo concentrado, chama circular, cumpra minha ordem, vá aonde eu mandar" — O inimigo não entenderia dracônico, mas não precisava.

A folha foi completamente consumida, no lugar dela, formando-se uma esfera de fogo pulsante que, com um gesto da conjuradora, zuniu rumo ao adversário.

— Nada dessa coisa de magia — falou o gnoll, desviando para o lado, e por pouco não perdendo o equilíbrio e caindo de lá, como a aliada antes dele.

Ele gargalhou ao ver a decepção nos olhos dela, fazendo nova mira contra a kobold. A azagaia foi certeira contra a pequena, que espertamente usou a bolsa como escudo. O grosso livro lá dentro, a salvando da morte certa. Ela caiu sentada com a força do impacto, mesmo assim manteve uma mão levantada, em concentração. Foi forte, apesar da dor. Forte, apesar do medo.

— "... dance, gire, faça queimar..." — disse ela em dracônico. Ele não entendeu. Talvez precisasse.

O gnoll tentou escapar, mas era tarde! A esfera de fogo intenso ainda estava sob o poder da kobold, e vindo de modo sorrateiro, atingiu em cheio o adversário. O sujeito caiu, rolando e rolando, até chegar ao chão da estrada. Fumaça saia das costas dele, e sangue de outras partes.

— Te devo essa — disse Kold, caminhando até o inimigo caído.

— Me deve duas, "protegido" — respondeu ela, ciente do que ele faria.

O gnoll baixinho cuspiu sangue e dentes, tossindo.

— Eu me entrego, senhor Mata-dragão — disse o bandido, erguendo as mãos e com olhos assustados.

A espada desceu com violência e força, rasgando e separando da cabeça à metade do tronco. Sangue espirrou sobre o jovem guerreiro e sobre a terra, fazendo os três últimos inimigos se encararem com olhos arregalados, antes de partirem em retirada.

— Eu faço a limpa nos corpos, ponho o que for útil em cima do Trobobo, e te alcanço — falou Petúnia. — Você segue eles no Devorador, e tenta matar antes de avisarem o chefão e os outros.

— Era o que eu ia fazer mesmo — respondeu o halfling, montando no animal. — Quero resolver tudo hoje. Quero matar o chefe.

Ele deveria estar bem cansado, ela refletiu, mas sempre parecia cheio de energia. Era afinal, o Kold. O teimoso e marrento, kold.

***

Os bandidos pegaram direções diferentes, para despistá-lo. Ainda assim, após contornar o desfiladeiro, não foi difícil diminuir a distância em cima do Devorador, e alcançar o primeiro deles. Ele não tentou lutar, só fugir. A espada taúrica cortou com velocidade. Kold gritou, de orgulho e fúria. Eram menos seis, agora. Faltavam quatro, e então o líder.

O segundo foi bem mais difícil. Devorador estava cansado, e Kold sabia que não podia passar tanto tempo forçando seu companheiro a suportar seu peso com a espada. Foi ao lado do cão, enquanto ele farejava o inimigo. O sol estava mais avançado no céu quando o encontraram escorado a uma árvore, ofegante e assustado. A espada atravessou o peito desse, sem palavras. Kold tinha pouco fôlego no momento. Outro gnoll, outra morte.

Com certa dificuldade encontrou o rastro do terceiro, mas já sem esperança de encontrá-lo a tempo. Por fim o achou, já sob a luz de Tenebra, em frente a uma cabana. Próximos a ela, haviam dois trobos ligados a carroças abastecidas, e duas tendas largas, uma de cada lado. Cheiro de cozido vinha da panela na fogueira, que o gnoll mexia. Galinha vermelha, seu estômago reconheceu... e roncou. Galinhas como aquelas ciscando no cercadinho próximo a cabana. Kold abriu o cantil, bebendo o que havia de água e dando o resto ao Devorador. Limpou o suor com a capa, estalou o pescoço e ajeitou o elmo de chifres. Os gnolls estavam lá. O chefão estava lá. Pena Petúnia não estar também.

Montou no cão e avançou, com o cenário iluminado por algumas tochas em pontos específicos. Devorador rosnou e ele reagiu, desviando de uma azagaia vinda da escuridão. Kold pegou a azagaia do chão e arremessou de volta. O jovem gnoll avermelhado caiu, com uma haste enfiada no tronco. Se eram oito, agora só faltavam dois, pensou. Isso até que outros três surgissem de trás das árvores que o cercavam... totalizando quatro.

— Perneta desgraçado... eram doze, não dez — resmungou ele, espada à frente do corpo.

Os gnolls rosnaram, apontando azagaias para o invasor. As árvores lhes dariam cobertura e dificultariam o ataque dele, mas Kold não se importava com isso. Só que preferia enfrentar logo o chefe, enquanto estava mais inteiro.

— Seguinte, cachorrada. Tô cansado de matar gnoll, quero algo mais forte. Me levem ao seu chefe, e dessa vez eu até aceito a rendição de vocês.

Os três desconhecidos gargalharam, até o fugitivo rosnar algo que os fez parar. Deve ter sido o único a entender que não era piada.

— Acho que é melhor então eu me apresentar. — A voz veio de dentro da cabana, grossa e imponente.

Os gnolls pareciam surpresos, mas Kold estava radiante! Quem saiu da cabana foi nada menos que um minotauro. Mais alto que qualquer deles, e visivelmente muito mais forte. Os músculos eram grandes e lustrosos, num corpo que parecia ter sido talhado para o combate. A maior parte do tronco escuro era lisa, com a pelugem mais densa nas extremidades dos membros e do pescoço para cima. Ele tinha pés, e não cascos, seus chifres largos e pontudos como os de um touro. Caminhou despreocupadamente em suas vestes simples e curtas.

Devorador de dragões rosnou, e o sujeito enfim parou. Tecou no cachorro um osso de galinha, que ricocheteou no elmo do animal.

— Chifres num halfling, chifres num cachorro... que piada é essa? — questionou, de cima.

— Me chamo Kold Mata-dragão, e sou devoto do grande Tauron. O Devorador de dragões, também. E em nome do nosso deus, o desafio para um duelo!

Os gnolls caíram na risada, com exceção do fugitivo. O minotauro não riu, apenas fitou o halfling. Então cruzou os braços, passando os olhos por seus subordinados.

— Aceito seu desafio, Kold Mata-dragão. Mas apenas se for segundo os preceitos do grande e forte Tauron.

— Sim, é isso que eu quero — disse ele, animado. Aquele adversário era digno, e o reconhecia e respeitava. — Uma luta entre fortes, e quem vencer, leva tudo.

O minotauro balançou a cabeça, em concordância.

— Sim, uma luta entre fortes. Mas Kold... servos de Tauron jamais aceitam montar em animais. É desonrado.

Kold travou. Então desviou o olhar, envergonhado. Os gnolls, riram. Ele ficou hesitante, mas por fim desmontou do cão e, fazendo um carinho, o mandou se afastar. O cachorro teimou, mas após alguma insistência, obedeceu.

— O Devorador é só um amigo que me dá carona... não preciso dele pra vencer. Que seja do jeito de Tauron, então. Só que ainda não sei o nome do meu adversário.

— Me chamo Victauros, Kold Mata-dragão — disse ele, estalando os pulsos e assumindo uma postura com os punhos cerrados à frente do corpo. — Quem vencer leva tudo.

***

Os olhos dela enxergavam bem melhor daquele jeito, sob o manto da noite de Tenebra. A luz de Azhger nunca fora amiga dos kobolds, e ela sempre se sentia mais à vontade longe dele. Petúnia foi esperta ao usar a gnoll sobrevivente como guia até o esconderijo dos inimigos, sorte dos três que Kold hesitasse em matar fêmeas. Rerna, a gnoll, foi à frente, focinho e mãos amarrados, junto a uma corda no pescoço que a ligava ao trobo. Já Petúnia ia acima do animal e sua carga, com uma lança apontada para a refém. Agora, tanto Trobobo quanto a gnoll estavam presos a uma árvore, até que ela voltasse.

A kobold rosnou baixo, ao ver a situação. Kold enfrentava sozinho um enorme minotauro, enquanto quatro gnolls se posicionavam de modo a bloquear a aproximação do Devorador de dragões, ao mesmo tempo que podiam atacar o parceiro em um ponto cego.

— Estúpido — resmungou, batendo a mão na face.

O minotauro avançava com uma série de socos rápidos, seus pés numa estranha dança, sem dar tempo e espaço para o halfling armar um golpe. Um gancho bem dado ergueu Kold a coisa de meio metro do chão, e um soco direto o jogou ao dobro dessa distância. Ela ficou tensa, mas não sabia como interferir no momento. Os gnolls eram vários e em pontos perigosos, e ela ainda carregava as feridas da batalha anterior. Morrer era uma possibilidade real. Teria que agir com frieza e confiar no pequeno.

E apesar dos erros, Kold não decepcionava. Mesmo cuspindo sangue e quase caindo, se manteve de pé e de espada em punho. Mais que isso: sorria!

— O senhor bate bem e bate forte, senhor Victauros — disse ele, balançando a espada em preparação. — Mas eu não gosto de perder. Por Tauron!

Ela viu o minotauro desviar por pouco do arco com a espada, e então ser obrigado a bloquear com seus grossos braceletes de metal ao ataque seguinte. Kold usava seu tamanho para mover a espada de modos inesperados, e desceu com ela com força e fúria contra a defesa do inimigo. O minotauro o empurrou em seguida com seus chifres, afastando o garoto.

Kold estava ofegante, mas sorrindo, animado. O tal Victauros tentou manter a pose, mas ela viu o metal se partindo e os pulsos dele sangrando. Kold devia admirar demais o sujeito para notar e acreditar, mas ela discerniu o leve tremor nos braços do homem-touro, assim como o medo em seu semblante. Ele não tinha como bloquear outro daqueles, era só Petúnia ficar alerta para impedir a interferência dos gnolls, que Kold podia mesmo vencer.

Foi com essa esperança que ela diminuiu a distância até ficar a apenas poucos metros do gnoll mais próximo. Esperança que logo se perdeu.

— Você é um guerreiro digno e respeitável, Kold Mata-dragão — disse o minotauro, freando com as palavras o avanço do halfling. — Mas mesmo que vença, sua vitória não terá nenhum valor aos olhos do nosso deus.

— Como assim? Estou lutando de igual pra igual, sem montaria — contestou Kold, sua voz demonstrando ter entrado na dele.

— Não finja que não conhece os dogmas da nossa fé, irmão — disse o lutador, sob alguns risinhos. — Tauron é claro quando ordena que seus campeões jamais lutem com armas superiores às do inimigo. Pois você usa uma espada taúrica, a mais poderosa arma entre os minotauros... contra um irmão de mãos nuas.

Kold travou, ela viu. Petúnia teve de se segurar para não gritar, para não usar todo poder mágico e papel que ainda tivesse contra o halfling idiota que cairia na estratégia do esperto inimigo. E como ela temia e sabia, ele assim o fez. Hesitou, olhando em volta. Segurou com força o cabo da arma, praguejando sob o olhar pétreo do minotauro que o encarava de cima. E enfim, encravou a espada naquela terra macia.

— Kold Mata-dragão não tem medo de nada! Posso vencer qualquer minotauro em luta justa, sob os olhos do grande Tauron.

Devorador latiu, como prevendo o que viria. Ela bateu a mão na face, sabendo o que viria. O minotauro riu e os gnolls gargalharam. Kold seria massacrado.

O pequeno partiu para cima, seus socos com pouco alcance e força, desviados ou bloqueados pelo inimigo superior. Petúnia sabia que agora seria rápido, por isso tinha que agir. Muitos inimigos e espalhados, com Kold em plena desvantagem. Se soubesse o rumo que tudo tomaria, teria agido antes. Mas agora era tarde para lamentar... e que Tenebra lhe fosse uma mãe generosa, uma vez na vida, sussurrou aos céus.

***

Seus socos não chegavam ao rosto do inimigo. Kold era rápido, sem a pesada e enorme espada, ainda mais. Só que seu alcance era pequeno, enquanto o do inimigo, não. Kold acertava alguns socos e chutes no minotauro, mas nada que mudasse sua situação. O corpo forte do inimigo parecia absorver seus golpes, e o queixo — que poderia ser um ponto fraco —, ficava protegido pela altura e os braços à frente. E os golpes dele vinham. Fortes, pesados, treinados... fortes demais. Os do pequeno Kold eram tão fracos comparados aos do inimigo. Não devia ter tentado competir com ele sem sua espada, no fim das contas.

Sangue na boca, dente meio-solto, costela doendo. Ele caiu de joelhos pela segunda vez, sem ter certeza de conseguir levantar. A cabeça zonza, mal discernia o que eram latidos do companheiro canino e o que eram risadas dos bandidos gnolls.

— Você quer se provar forte como um minotauro, não? Mas é apenas burro como um trobo! — foram as palavras do adversário.

Kold arriscou tudo numa luta que não podia vencer. Tentou se levantar... teve que se apoiar nas mãos. Muito zonzo. Victauros ainda falava, zombava. Kold não entendeu nem metade da frase, só viu sua amada espada nas mãos dele. Então a viu. A ouviu. Era Petúnia.

— Chega de luta! Nós nos rendemos, senhor Victaurus, segundo as leis dos gnolls — Ela estava no meio deles, mãos para cima e se ajoelhando. — Levem tudo, só nos deixem vivos. Pelo costume gnoll.

— Você ficou maluca? Vai com o Devorador, me deixa terminar o duelo — ele disse, com medo por ela e seu amigo.

Os gnolls riram, Victauros riu. Os gnolls a cercaram, com suas lanças apontadas. Ela olhava para Kold... parecia pedir para que ele ficasse onde estava.

— Então é essa a bruxinha que ajudou a matar meus homens? — questionou o minotauro, com a espada dele em mãos. — E então, pessoal, o que querem fazer com ela?

Os gnolls se olharam, resmungando coisas em uma língua própria. Por fim o sobrevivente disse:

— Eu queria arrancar a carne escamosa dela dos ossos... mas lei é lei, e ela se rendeu. A gente pega tudo deles, dá um corretivo e solta em algum lugar.

— Não! — Kold gritou ao se erguer, força tirada sabe-se lá de onde.

Avançou de modo impossível sobre o minotauro surpreso, acertando um murro com toda força que tinha na face bovina dele. Victaurus deu um passo para trás, sangue saindo dos lábios. Kold caiu após o golpe, toda força perdida.

—... soco digno de um minotauro — disse ele, limpando o focinho com a mão enorme. — O problema, pequenino, é que sou um minotauro bem durão.

Kold arfava, sem fôlego, forças ou esperança. Petúnia o encarava com tristeza em seus grandes olhos incomuns. Devorador era afastado e contido por lanças.

— Mudança de planos, pessoal — disse Victaurus, após chutar um halfling sem forças do caminho. — O pequeno me deixou irritado, agora quero testar o fio dessa bela espada na pele da kobold. Morte a bruxinha, morte ao cachorro... só o halfling vai ficar vivo. Vai valer um dinheiro para uns amigos que tenho no Império.

Os olhos dele se encheram de água. Sua garganta sem conseguir soltar as palavras. Viu Petúnia, a esperta Petúnia. Viu sua espada nas mãos do carrasco... por sua culpa. Viu seu amado cachorro tentando ajudar, quando devia fugir. Viu o véu de Tenebra, dominando o céu, caindo sobre seus olhos.

Ele a perderia, perderia o Devorador. Perderia tudo que tinha.

***

Kold sentiu a costela doendo, antes de abrir os olhos. Se virou de lado sentindo o sangue na boca... que saiu junto a um dos dentes. Ele gostava de ter todos os dentes, era chato perdê-los. Era noite, com ele dentro da cabana que era do minotauro, sobre uma cama de palha. Se levantou, após a terceira tentativa. Caminhou até o lado de fora, se apoiando onde podia. Lá a noite reinava, com algumas tochas e uma fogueira.

Kold lembrou do que não queria. Gemeu com a dor da costela. Chorou pela dor no peito. Não havia ninguém lá, além dele. Kold não tinha mais ninguém.

Então ouviu passos, e viu um vulto surgir. Alto, forte: Victaurus.

— Sabe que foi sua culpa, certo? — ele perguntou ao halfling, que nem mesmo se moveu.

Kold apenas balançou a cabeça afirmativamente, entre soluços.

— Sua espada decapitou seus companheiros hoje — disse ele, segurando a arma suja de sangue. — Tudo por que você foi orgulhoso demais arriscando tudo. Tudo porque você se deixou levar pelas palavras de um inimigo.

Kold se sentou, reprimindo o gemido pela costela. Não conseguia olhar para o minotauro, apenas abraçar o próprio corpo.

— Foi fraco, não no corpo, mas na mente. Você podia ter vencido lutando com tudo que tinha. Podia vencer até quando lutou sem o cão... mas caiu na lábia do inimigo, e pôs tudo a perder. Você entende isso? Reconhece isso?

—... eu sei — confessou ele, erguendo o rosto molhado. — É minha culpa. Eu sei.

Um momento de silêncio, com Victaurus se inclinando até a altura dele, antes de dizer:

— Que bom que aprendeu a lição, Kold Mata-dragão — disse a poderosa voz do minotauro, diante de um guerreiro acabado. — Usei minha última magia de ilusão para ensinar isso.

Foi com olhos arregalados, que Kold viu o inimigo sumir diante de seus olhos, como se feito de cinzas de papel. De trás dele, uma já conhecida kobold. Kold se ergueu num impulso, abraçando aquela que pensou estar morta. Apoiou a cabeça no ombro da amiga, voltando ao choro.

— Desculpa... desculpa, Petúnia. Por todos os deuses... me perdoa.

Ficaram um tempo assim, ela parecendo constrangida, ao fim do abraço.

— Eu devia te deixar sofrendo por uma semana, antes de dizer a verdade — resmungou ela, assobiando em seguida em direção ao matagal.

Latidos familiares foram ouvidos em resposta, com o Devorador de dragões correndo e saltando sobre um halfling em más condições. Uma chuva de lambidas, com Kold finalmente rindo como de costume, e arrancando um riso dela. Petúnia jogou mais lenha na fogueira, e logo eles comiam o que sobrou do ensopado de galinha vermelha, enquanto conversavam.

— Ilusão — respondeu ela, quando inquirida pelo garoto sobre como sobreviveu aos inimigos. — Minha imagem rendida, de joelhos e falando com vocês, foi uma isca. Quando todos se juntaram no mesmo lugar...

Kold riu, já sabendo o que viria disso, e completando por ela:

— "Bola de fogo"!

Ela riu, também. Ele sabia o quanto ela gostava de magias de fogo... a faziam sentir-se poderosa como uma dragoa vermelha. Ele olhou em volta, vendo empilhados os corpos dos inimigos queimados. Então falou o que o perturbava:

— Eu não vejo o corpo do Victaurus.

— Ele sobreviveu — ela disse, tomando o caldo numa cumbuca. — Era muito durão, saiu bem queimado, mas conseguiu fugir.

Kold mordeu o osso da ave, sugando do tutano. Por fim, sentenciou:

— Eu vou matá-lo.

— Sei que vai, é o que você faz — ela respondeu, complacente. — Mas não agora. Você vai dormir, descansar, cuidar das feridas e receber nossa recompensa. E só depois, perseguir e matar.

Kold balançou a cabeça, concordando, antes de soltar:

— E uma das filhas do perneta, para meu harém.

Petúnia apenas o encarou, até ele se dar por vencido. Por fim, ele sorriu, e perguntou:

— Então... posso dormir no seu colo?

***

Petúnia estava sentada diante da fogueira, com a cabeça do halfling apoiada sobre as pernas. Acariciava seus cabelos com toda leveza que sua mão de grossas garras permitia. Ele dormia, seu peito subindo e descendo ao compasso do canto que ela recitava. Parecia um adolescente humano... e ela, algo por demais diferente.

Uma lágrima escorreu dos olhos dela, algo bem raro. Devorador de dragões se aproximou, lambendo seu rosto, como se quisesse confortá-la. Ela o acariciou com a outra mão, até que ele se aconchegasse ao lado de seu dono.

— Te chamei de fraco, mas não sou diferente — disse ela, roçando sua face reptiliana no rosto do halfling. — Incapaz de falar o que eu sinto de verdade.

Lambeu os lábios dele. Para ela, equivalia a um beijo roubado.

— Vocês são tudo que eu tenho... o risco é grande demais — Petúnia deitou-se ao lado deles, olhando para o manto de Tenebra no céu.

— No fundo, a fraca sou eu.
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Re: (Conto) "Força e Fraqueza"

Mensagem por valberto » 31 Jan 2020, 18:08

Cara, eu gostei. Não era bem o que eu esperava. Poderia ser mais sutil. Me senti um pouco numa aula prática sobre os dogmas religiosos de arton, mas eu gostei. Umas reviravoltas bem bacanas.

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Re: (Conto) "Força e Fraqueza"

Mensagem por kold » 01 Fev 2020, 10:32

valberto escreveu:
31 Jan 2020, 18:08
Cara, eu gostei. Não era bem o que eu esperava. Poderia ser mais sutil. Me senti um pouco numa aula prática sobre os dogmas religiosos de arton, mas eu gostei. Umas reviravoltas bem bacanas.
Que bom que curtiu, isso é o mais importante ^^
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Re: (Conto) "Força e Fraqueza"

Mensagem por Duda Vila Nova » 02 Fev 2020, 09:27

Então. Eu gostei da história... Mas ela ser montada em cima de uma sequência de flashbacks me incomoda pessoalmente (questão meramente de gosto pessoal mesmo).

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Re: (Conto) "Força e Fraqueza"

Mensagem por kold » 02 Fev 2020, 12:18

Duda Vila Nova escreveu:
02 Fev 2020, 09:27
Então. Eu gostei da história... Mas ela ser montada em cima de uma sequência de flashbacks me incomoda pessoalmente (questão meramente de gosto pessoal mesmo).
Obrigado por comentar, é bom pra saber a percepção de quem leu. Achei o uso de flahsbacks útil pra apresentação dos dois principais já começando pela parte de ação, mas entendo que não seja algo que agrade a todos.
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Re: (Conto) "Força e Fraqueza"

Mensagem por Richardsl » 04 Fev 2020, 16:30

Me causou estranheza essa quebra da quarta parede. E não gostei da falta de sequencialidade da história. Ficou parecendo uma reunião de microcontos sobre o personagem. Entretanto o personagem é carismático e gostaria de ler uma história maior e mais fluída dele.

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Re: (Conto) "Força e Fraqueza"

Mensagem por kold » 05 Fev 2020, 10:34

Richardsl escreveu:
04 Fev 2020, 16:30
Me causou estranheza essa quebra da quarta parede.
Não entendi muito bem o que você considerou quebra da quarta parede.
Richardsl escreveu:
04 Fev 2020, 16:30
Entretanto o personagem é carismático e gostaria de ler uma história maior e mais fluída dele.
Que bom que gostou do Kold. É um personagem pelo qual tenho carinho, divertido de interpretar in game ou de escrever sobre, e tem alguns aspectos interessantes que não caberiam nesse conto.

Obrigado por deixar suas considerações ^^
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Re: (Conto) "Força e Fraqueza"

Mensagem por Richardsl » 05 Fev 2020, 15:10

Você conversa com o público. Ou seja, você não buscou que o público submergisse na história mas que lembrasse que aquela era uma história. Se fosse um filme o teu personagem falaria com a camera de tempos em tempos.

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Re: (Conto) "Força e Fraqueza"

Mensagem por kold » 06 Fev 2020, 12:09

Eu narro em terceira pessoa, com narrador limitado. Nessa história, com dois protagonistas aparecendo em dois momentos diferentes do tempo. Não entendi exatamente o que quer dizer, talvez um exemplo do texto ajudasse a tornar sua análise mais clara pra mim ^^
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