(Conto em Tamu-ra) Norte Vermelho

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glaucolessa
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(Conto em Tamu-ra) Norte Vermelho

Mensagem por glaucolessa » 08 Fev 2020, 12:22

Yuki enfim descobrira: havia, sim, neve no inferno. Acordara com os toques gelados e macios da friagem nortenha em seu rosto. A madrugada nublada de Shirokita não lhe dava trégua.

— Por Morikita Hideki! — Yuki bradara na noite anterior, diante de dezenas de inimigos.

Ela e seus guerreiros emboscaram um destacamento de homens no território de Yoshida Goro. O plano era derrotá-los e sequestrar algum samurai como refém. Entretanto, a manhã revelava todos os soldados de Yuki mortos. Havia apenas sangue e tripas lavados na neve do Norte Branco. Yuki estava viva graças à confusão e à escuridão da noite, mas no fim, todos os seus cinquenta homens foram trucidados pelo inimigo.

Por um ou dois minutos, Yuki apenas observou o campo de batalha fétido e mórbido. Houve morte, sim, mas também houve honra. Aqueles homens enfim encontraram descanso. Yuki não.

Apoiou-se em sua naginata úmida de neve e seca de sangue e mancou pelo campo de batalha à procura de outros sobreviventes. Só havia o grasnar dos corvos e o farfalhar dos galhos secos das árvores, quando uma voz familiar reverberou na planície.

— Está satisfeita, Yuki? — Não era uma cobrança, nem uma provocação. Somente uma pergunta sincera e carinhosa.

Yuki virou-se para a voz, e ali estava o espírito de seu pai, Morikita Hideki, a carregar nos braços a própria cabeça cortada. Vestia um quimono branco como a neve sob seus pés, cortado e ensanguentado na altura do abdome. Apesar de estar diante do fantasma do próprio pai, Yuki fingiu uma naturalidade impossível, mais envergonhada por se encontrar com ele em uma derrota como aquela do que assustada ou curiosa.

— Você vai poder descansar junto desses homens em breve — Yuki respondeu, sem deixar seus olhos encontrarem com os dele. Voltou a mancar entre os mortos. — Não pense que desisti.

— Você sabe bem que essa não é a razão para que eu esteja aqui. Você precisa parar, minha filha.

Yuki fechou os olhos com força, tamanha a raiva que sentiu daquelas palavras. Conhecia seu pai e, no fundo, temia que ele tivesse voltado para dissuadi-la. Para apaziguar as coisas. Era melhor que jamais tivesse aparecido.

— Como ousa dizer isso diante dos corpos dos homens que lutaram pela sua honra?

— Você os fez lutarem para morrer, não eu. Mas ainda não é tarde...

— Ainda não é — Yuki interrompeu. — Aquele desgraçado vai pagar.

Hideki calou-se na esperança de que o silêncio por si só revelasse à sua filha o absurdo daquela vingança. Em vão.

— Por que não cura sua perna?

O questionamento preocupado pairou entre as árvores secas. Yuki não respondeu, até que os dois ouviram engasgos e gemidos ao longe. A samurai apertou o passo manco.

— Akira! — Yuki largou a lança ao chão, agachando-se ao lado do guerreiro.

Uma grande fenda abria a armadura na região das costelas do moribundo e ainda expelia sangue, manchando a neve ao redor. Yuki pôs suas mãos sobre o ferimento, sem tocá-lo. Cerrou os olhos e se concentrou em recitar um mantra. O ferimento fechou. Akira estava salvo.

— Yuki-sama, me perdoe!

— Não diga nada, guerreiro — ela o impediu. — Você precisa descansar. Nossa missão ainda não acabou.

***

Nas horas que se seguiram, Yuki confirmou os mortos ou concedeu misericórdia àqueles feridos demais para serem salvos pela sua cura. Só restara ela e Akira. E o fantasma de seu pai. O sol começava a nascer em Tamu-ra, ainda escondido atrás das nuvens de Shirokita.

Enquanto Yuki mancava em busca de gravetos e galhos caídos para alimentar a fogueira acesa, Akira descansava ao calor do fogo. Seu antigo senhor tentava lhe persuadir:

— Você é o único que pode fazê-la desistir. — Embora sua cabeça estivesse separada do corpo, a boca e os olhos de Hideki ainda se moviam. Sua expressão era grave.

Akira estava assombrado com a presença do espírito. Todos os seus companheiros de armas haviam acabado de morrer em nome de Morikita Hideki. No entanto, ali estava ele dizendo que nada daquilo deveria ter acontecido. Não sabia se aquilo era misericórdia ou punição divina.

— Morikita-sama... eu já teria partido para junto de Lin-Wu logo depois do senhor. Yuki-sama nos proibiu de segui-lo no seppuku. Disse que só poderíamos morrer depois de vingá-lo. É isso que estamos fazendo. É pelo senhor!

— Veja onde isso os trouxe — respondeu Hideki, lançando o olhar para os cadáveres ao redor dos dois.

— Não cabe a mim questionar, senhor. Todos nós estávamos tão dispostos a vingá-lo quanto Yuki-sama. Foi a promessa que fizemos.

— Mas agora eu estou aqui, dizendo que nada disso é necessário!

— Yuki-sama não parece ter mudado de ideia.

O fantasma suspirou e encarou a fogueira.

— Você sempre foi um bom samurai, Akira-kun. Desculpe ter falhado como seu suserano.

Akira ficou em silêncio, em uma maneira polida de recusar as desculpas de seu senhor falecido. Yuki se aproximou, mancando ainda mais, sem se impressionar com a tentativa de Hideki de convencer seu último homem.

— Desista, pai. Nós não temos mais volta. Somos homens-onda. — Jogou os gravetos e galhos próximos ao fogo. — Os Morikita vão bem. Meu sobrinho será um bom daimyou.

— Mas era você que deveria assumir. Você abandonou tudo por causa desta vingança sem sentido. O que acha que ela trará?

— Nada — Yuki murmurou, olhos nas chamas —, mas acha certo o que fizeram com o senhor? — Encarou-o finalmente.

— Não importa o que é certo! — A voz imperiosa do falecido ecoou na planície nevada. — O que importa é o dever!

— Yoshida conspirou contra o senhor!

— Não havia o que eu pudesse fazer para provar minha inocência, filha. Não pelo caminho da honra. Yoshida me superou.

— Não questiono a sua morte, pai, mas é para vingá-la que não estou trilhando mais o caminho da honra. Sou uma rounin. Preciso que o senhor aceite isso. Parece que só assim sua alma encontrará Lin-Wu.

Lágrimas escorreram da face do homem. Os ombros sem cabeça espasmaram com os soluços contidos de Hideki. Akira apenas observava, tenso, sem ousar se intrometer.

— Você fala de Lin-Wu... — Mais lágrimas. — O que Lin-Wu deve pensar ao ver uma de suas próprias bênçãos sujar as mãos dessa maneira? Sua benção era para curar o Império! Restaurá-lo! E não trazer morte em função do seu ego!

Meio-dragões representavam tudo que Lin-Wu mais defendia. Eles costumavam nascer quando o deus da honra resolvia agraciar uma família que era digna. Era uma verdadeira bênção divina, e por isso às vezes vinha acompanhada de algum sinal belo da natureza.

— Lembro ainda hoje do dia que você nasceu — Hideki disse. — Nevava muito, mas assim que sua mãe segurou você nos braços, o sol saiu. A neve continuou caindo forte, lutando contra o calor. Dei-lhe o mesmo nome da neve, com o mesmo ideograma. Talvez por isso você sempre seja assim, teimosa.

— O senhor acha que abandonei minha honra por causa do meu orgulho? — A voz de Yuki tinha um tom de decepção, mas também de interrogatório.

— O que mais seria?

A provocação desesperada de Hideki se perdeu no crepitar do fogo. Filha e pai continuaram se encarando por segundos que pareciam não ter fim. Para Akira, era mais difícil vê-los assim do que brigando. Abaixou sua cabeça e levou a testa e as mãos à neve ensanguentada, em uma mesura gentil.

— Perdoem a intromissão deste servo... mas por favor, parem de brigar.

— Então a impeça, Akira-kun! É uma ordem de seu senhor! — Em meio às lágrimas a fala pareceu mais uma súplica.

— Não o ouça, Akira! — Yuki ordenou impassível, embora sua fúria fosse visível no olhar. — Você não responde mais a ele. Somos rounin. Não temos senhor.

Yuki ainda encarava o próprio pai, certa de que não precisava olhar para seu subalterno para fazê-lo entender. Hideki desistiu de implorar a Akira, inconsolado com o destino da filha.

— Amanhã cedo, partimos — Yuki continuou como se nada tivesse acontecido, sua vontade dura como pedra. — Você me levará até o castelo dos Yoshida e me entregará indefesa. — Olhou para a perna machucada, suja de sangue e roxa dos hematomas. — Você fará com que acreditem que estou indefesa. Fará com que acreditem que me traiu.

Hideki não conseguia acreditar naquilo. Akira estava atento, sem demonstrar uma emoção sequer.

— A senhorita tem razão... — ele disse, por fim. — Somos rounin. Não temos senhor. — E se levantou.

Chocada com a resposta de Akira, Yuki interrogou:

— O que pensa que está fazendo?!

— Indo embora — respondeu, tranquilo.

— Eu nunca poderia permitir isso! — Yuki bradou, em tom de desafio.

Akira encarou a bravata da samurai, e então veio o pedido:

— Mate-me então, senhorita.

A lança estava ao seu lado, mas Yuki não conseguiu tomá-la nas mãos contra o companheiro. Akira fez uma mesura profunda.

— Com a licença dos senhores...

Logo depois desapareceu entre as árvores secas de Shirokita.

***

O castelo dos Yoshida não estava longe, mas com a perna inchada, Yuki parecia estar cruzando Tamu-ra inteira. Havia se curado apenas o suficiente para que pudesse chegar ao inimigo, afinal ainda precisava parecer machucada.

O fantasma do pai a acompanhou por todo o caminho, calado. O silêncio, no entanto, não era tranquilo — era inquieto e carregado de arrependimento. À frente, os portões dos Yoshida. Yuki estava focada; Hideki já nem tinha mais certeza se ela o notava.

— Uma vez li um poema — o fantasma falou de repente. — "A forte nevasca nunca derrete. Até que o sol sorri de volta, e a neve o reflete."

Yuki ofegava até o portão.

— Eu espero que pare de lutar contra o calor — Hideki concluiu. — Ou você acha que seu pai foi um homem santo?

Já à frente do portão, a guerreira começou a ouvir o burburinho dos homens de Yoshida. Primeiro, houve dúvida de que se tratava de Morikita Yuki. Depois, receio de uma nova emboscada, mas Yuki deixou que sua lança fosse ao chão, agachando-se em rendição e dor. Virou a cabeça para trás rapidamente para ver seu pai uma última vez.

Hideki não estava mais lá.

***

Yuki fora levada para um quarto modesto, mas respeitável. Em nenhum momento vira o senhor daquelas terras, mas dissera aos homens dele:

— Avisem Yoshida Goro que estou aqui para me entregar. Pretendo cometer seppuku e partir ao encontro de meu pai.

Tudo engodo, claro.

À sua frente, havia um quimono branco delicadamente dobrado, junto da última refeição que acabara de fazer. Um prato típico do norte de Tamu-ra, que sua mãe sempre costumava preparar: macarrão, pasta de soja, fatias de lombo suíno, cebolinha e algas marinhas. Era o favorito de Yuki.

Sobre uma mesinha baixa, havia pergaminho e tinteiro para o poema de despedida. Yuki sentou-se e tomou o pincel, mas não sabia o que escrever. Embora o seppuku não fizesse parte de seu plano, ela sabia que aquelas poderiam ser suas últimas palavras escritas. Depois de algum tempo refletindo, o pincel deslizou sobre o papiro:

A forte nevasca nunca esquece
Até que o sol sorri de volta
E a neve o derrete

Despiu-se da roupa imunda de sangue e vestiu o quimono branco para o ritual. A perna já estava completamente curada, pronta para ser castigada em combate novamente. Esperou. Pela janela, Yuki observou a forte nevasca que havia começado lá fora.

***

Não era comum que um samurai fosse à porta de seu inimigo declarado para cometer seppuku. Muitos samurais realizavam o ritual no próprio campo de batalha ao perceber a derrota. Nem por isso seria adequado para Yoshida Goro negar o pedido de Yuki. O seppuku era um direito quase inalienável de qualquer samurai.

Ainda naquela tarde, sob forte nevasca, Yoshida decidira organizar o ritual para a Morikita. Quanto antes, melhor. As acusações da samurai cairiam no esquecimento, e Yoshida poderia se sentir tranquilo sem nenhum inimigo jurado em seu castelo. Por toda a solenidade da ocasião, no entanto, Yoshida teria que estar presente.

Quando Yuki foi levada pelos guardas até o pátio, viu não somente Goro, como vários outros samurais do castelo do suserano. Ao seu lado direito, estava sua esposa, e ao esquerdo, um menino que provavelmente era seu filho. Todos estavam sentados em fileira sobre as pernas, espadas postas de lado respeitosamente, com expressões dignas e sinceras em suas faces.

Tudo engodo, claro.

— Morikita Yuki, a senhorita pediu o melhor dos meus executores para auxiliá-la. Por causa do sangue samurai e da bênção de Lin-Wu que correm em suas veias, sua vontade me é soberana. Aqui está Hibiki, minha melhor executora e duelista. Ofereço-a humildemente — Goro anunciou, curvando-se.

Um de seus servos se levantou, e só nesse momento Yuki notou que era uma mashin, uma mulher máquina, uma das grandes obras-primas dos ferreiros de Tamu-ra. Apesar de metálico, o corpo de Hibiki era esguio e moldado como um corpo humano de músculos torneados. Seus olhos eram como faróis em uma costa tranquila. A devoção e a precisão de um mashin sempre foram lendárias. Goro não poupara na escolha do executor.

— Muito obrigada, Yoshida-sama — Yuki agradeceu, agachando-se e levando testa e mãos até o chão fofo de neve.

Os telhados do castelo protegiam Goro e seus homens. Estavam posicionados de frente para o pátio, onde a nevasca caía forte e incessante. Sentada na neve e de frente para eles, Yuki estava pronta para começar. A adaga esperava diante dela. Hibiki atrás, espada empunhada para o corte final.

Yuki desembainhou a adaga.

A nevasca se interrompeu de forma brusca. O sol despontou entre as nuvens, iluminando o pátio e tocando a neve.

No entanto, foi Yuki que o derreteu.

***

Akira não estava surpreso: havia, sim, fogo no inferno. As chamas se espalhavam rapidamente, consumindo as grossas colunas de madeira e painéis de papel. Havia encontrado a pólvora dentro do castelo. Não foi difícil pensar em uma forma de acendê-la.

Faltava pouco para as chamas alcançarem a pólvora no fundo do armazém. O castelo inteiro seria brasa, assim como o coração do samurai.

— A honra me trouxe até aqui — Akira confessou para as chamas. Talvez os espíritos do fogo o ouvissem. — Não tive escolha.

Estava sentado em meio ao incêndio, de pernas cruzadas sobre o piso de madeira a ser lambido pelo fogo. Não vestia sua armadura quebrada de antes — em vez disso, usava um quimono simples e limpo como todo bom servo dos Yoshida deveria usar.

Tudo em nome de Morikita Hideki e Morikita Yuki.

Akira chorou e esperou que o fogo o levasse embora.

***

Em vez de encontrar o ventre de Yuki, a adaga cerimonial disparou célere até o pescoço de Yoshida Goro, que engasgou no próprio sangue. Pânico e terror correram pelos rostos dos samurais. A esposa de Goro abraçou seu filho, tentando impedi-lo de ver mais daquela tragédia.

Hibiki desceu sua espada sobre Yuki logo em seguida, como uma chuva de aço. Yuki aparou a lâmina com as mãos nuas, e dois dedos caíram sobre a neve. Aproveitando-se da lâmina presa entre os ossos da mão direita, deu um forte puxão, desarmando a executora.

Hibiki desembainhou a espada curta da cintura, enquanto Yuki arrancou a espada de si mesma com sua mão esquerda, derramando sangue em profusão sobre o pátio branco. Os outros homens se posicionaram com suas lanças e espadas em torno das guerreiras, e uma flecha em algum lugar já estava apontada para a cabeça de Yuki, mas com um sinal de cabeça da mashin, todos pareceram respeitar o duelo.

— Como você conseguiu servir um homem traiçoeiro como aquele? Como todos vocês conseguiram? — Os gritos de Yuki retumbaram no pátio do castelo.

— Mata logo essa desgraçada, Hibiki! — A torcida dos samurais em volta pedia sangue.

— A que se refere? — A voz de Hibiki era tranquila. Seus nervos de aço não cederam nem com a morte do próprio senhor.

— Seu senhor conspirou contra meu pai! Plantou pólvora dentro de nosso castelo, fez com que um magistrado imperial descobrisse! O Norte inteiro sabe que quem vende pólvora para criminosos são vocês, os Yoshida!

E então, conflagrou-se uma ensurdecedora explosão em algum lugar do castelo.

***

O que era, afinal, o dever? Era o que Akira se perguntava.

A fumaça engolia todo o cômodo e fugia pelo teto destruído e pela porta entreaberta que o infiltrado havia deixado atrás de si. O fogo estava mais voraz que antes, como se soubesse que precisava consumir tudo antes que alguém o apagasse.

E Akira, intacto. Suas roupas, sem fuligem. A fumaça o evitava, poupando seu olfato do mau cheiro e seus olhos das lágrimas. Muitos escombros haviam caído ao redor de seu corpo, nenhum em cima dele.

Por quem havia feito tudo aquilo? Toda essa estupidez de honra, de desperdiçar a vida em nome da reputação de alguém... Um homem mal consegue defender sua honra de si mesmo, quiçá a honra de outro. Akira então percebeu: não havia incendiado o castelo dos Yoshida nem por Hideki nem por Yuki, mas por ele mesmo. Havia abdicado de viver no último momento provavelmente por causa do mau hábito típico dos samurais de fazer pouco caso da própria vida, mas agora ele entendia.

O fogo crepitava, e Akira ouvia o sussurro dos espíritos:

— Seja! — o fogo comandava. — Seja a sua própria vontade no mundo!

O samurai deixou o berço cálido no qual nascera de novo, intocado pelo calor. Ao sair para o corredor, viu uma criada encolhida sob uma mesa, de choro contido e de desesperança. Esticou a mão para ela:

— Não vale a pena morrer por eles. Vamos.

Ela lhe deu a mão sem pensar muito, e saíram dali.

No armazém, um pouco de neve ainda caía pela abertura criada pela explosão apenas para ser engolida pela volúpia das chamas.

***

Os seguidores de Goro confirmaram para si que aquilo só poderia ser parte do plano de Yuki.

— Maldita! Traiçoeira! — As espadas e lanças dos samurais cresceram em volta de Yuki, mas ela demonstrou tanto espanto quanto todos os outros.

— Você está por trás disso? — A imparcialidade de Hibiki era admirável.

— Não — Yuki respondeu, sincera.

— Não foi ela — Hibiki disse aos samurais sedentos por sangue, e pela convicção ou autoridade da mashin, eles acreditaram.

Alguns samurais saíram da roda de vingança para ajudar a aplacar o incêndio, mas a maioria permaneceu. A morte de Yoshida Goro era mais importante que todo seu castelo.

— Por que seguir um homem como aquele? — Yuki retomou, ofegante. Nem o mundo envolto em chamas a faria esquecer.

— Eu fui forjada para servir — Hibiki respondeu, em uma espécie de confissão. — Não cabe a mim questionar as ordens de meu senhor.

Yuki riu, espada empunhada e punho direito dilacerado. O chão já estava vermelho.

— Eu sou uma bênção nascida para servir — devolveu. — Mas estou aqui. Tenho alma. Você não?

Mesmo com a gritaria e o desespero do incêndio, as cinzas que se misturavam à neve e os impropérios de todos os samurais ao redor das duas, aquele foi um momento de silêncio. O momento único, incalculável, em que duas guerreiras se encaram como oponentes uma última vez.

— Não.

A espada de Yuki arranhou a superfície metálica de Hibiki, mas foi a espada curta da mashin que perfurou o peito da samurai. Yuki ajoelhou-se, derrotada. O quimono dela, antes branco, ostentava várias manchas vermelhas, que floresciam cada vez mais rápido sobre o tecido. Hibiki abaixou-se ao lado da oponente, em um gesto estranho de compaixão.

— Você não sabe... — ela disse, entendendo a situação de repente. — Morikita Hideki enviou um ninja para matar meu senhor.

Yuki ouvia as palavras, embriagada de morte.

— Eu mesma impedi o ninja. Meu senhor retaliou com a pólvora. Plantou-a dentro do castelo de seu pai, fez com que um magistrado imperial descobrisse. Exatamente como você disse, mas apenas porque seu pai enviou um ninja primeiro.

Uma parte de Yuki rejeitava aquela revelação, mas outra entendia que a mashin não tinha motivos para mentir — ao contrário, a executora buscava oferecer algum alento com a revelação de toda a verdade. Uma terceira parte, ainda, repetia a última frase do pai antes de desaparecer:

"Ou você acha que seu pai foi um homem santo?"

Yuki tombou morta sobre a cama escarlate que seu sangue criara na neve branca. Hibiki continuou a observá-la. Os samurais já haviam se afastado para ajudar a combater o fogo, mas a mashin permaneceu ao lado da meio-dragão, como se velasse sua alma. Alma que Hibiki não tinha.

— Entrou no pátio branca como o Norte. No final, o deixou vermelho — disse a mashin para si mesma, o que pareceu ser um poema.

***

A alguns quilômetros do castelo, ainda no território dos Yoshida, dois homens observavam o incêndio. O mais velho, com chapéu cônico sobre a cabeça e apoiado sobre uma enxada, começou:

— Eu espero que não sobre pra gente.

— É — respondeu o mais novo.

— Em pensar que pouco antes da explosão, a neve parou de cair — o velho constatou. — Será que é punição divina?

— Por guardar pólvora contra a lei imperial? — o mais novo sugeriu. — Talvez.

Os dois ficaram em silêncio, apenas observando a fumaça ao longe.

— Quem seria capaz de fazer uma coisa dessas? — o velho se perguntou, percebendo que o incêndio só podia ser criminoso.

Akira se afastou do velho, em um gesto de despedida. Conforme caminhou para a saída do vilarejo, o velho só pôde ouvir:

— Vai saber, meu senhor. Vai saber...

O camponês permaneceu ali vidrado, parte entretido, parte horrorizado com as chamas.

Richardsl
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Re: (Conto em Tamu-ra) Norte Vermelho

Mensagem por Richardsl » 10 Fev 2020, 10:46

Muito bom o conto. Só tenho duas observações: o excesso de "cortes de cena" e a cena final com o Akira (achei-a totalmente desnecessária).

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kold
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Re: (Conto em Tamu-ra) Norte Vermelho

Mensagem por kold » 11 Fev 2020, 09:28

Um belo conto, parabéns por ele. E concordo com o comentário acima, a cena com o Akira é desnecessária, e tira um pouco da força do final.
"O importante não é aquilo que fazem de nós, mas o que nós mesmos fazemos do que os outros fizeram de nós."

Jean-Paul Sartre

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Antonywillians
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Re: (Conto em Tamu-ra) Norte Vermelho

Mensagem por Antonywillians » 26 Fev 2020, 20:36

Ótimo conto. Em crítica o final bastaria com o poema do Mashin, realmente ter colocado novamente o Akira tirou um pouco a graça do momento. Sobre os cortes de cena não achei ruim, acho que fez muito bem para a dramatização com períodos bem construídos em ganchos instigantes.


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