IRA (CONTO)

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Carlos Perini
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Registrado em: 14 Fev 2020, 12:42

IRA (CONTO)

Mensagem por Carlos Perini » 14 Fev 2020, 21:43

A tinta escorria da mão do bardo, desenhando uma linha negra que partia de seus dedos manchados de nanquim, percorrendo o corpo da pena até chegar no delicado bico de prata, que, mesmo em meio ao frenesi desesperado do compositor, esboçava delicadamente as notas musicais na pauta em branco.

Escrevia o primeiro movimento.

Esse era, sem dúvidas, um momento muito importante. Na verdade, o mais importante de sua vida.

Ahamorin acreditava ter recebido as graças divinas de Tanna-Toh através da música, acreditava ter sido incumbido de criar a obra das obras, a composição mais perfeita, cuja força influenciaria toda a vida consciente que a escutasse.

Acreditava ter sido selecionado para mostrar ao mundo o poder da deusa através de sua música.

As melodias surgiam em sua mente como um golpe de adaga, tão rápido quanto à sua capacidade de transcrevê-las ao papel, era quase como se pudesse escutá-las. Por isso as rabiscava com velocidade quase sobre-humana, ao mesmo tempo em que se deleitava com o presente que acreditava estar recebendo.

Ao longo de seu árduo trabalho, percebeu que a música que escrevia lhe invocava fúria, o desespero e raiva infinitos que poderiam apenas partir dos infinitos desejos e sentimentos de um ser divino, uma música divina que lhe evocava ira.

Assim decidiu chamar o concerto: Ira.

Não restava dúvidas a Ahamorin, o bardo, que Tanna-Toh estava com raiva, e sua missão era contar isso ao mundo. Mais do que isso, era fazer o mundo sentir o mesmo.

Chegara ao segundo movimento.

Desde muito jovem demonstrou uma grande capacidade para interpretar e executar complexas composições musicais. Aos seis anos aprendera a tocar alaúde tão bem quanto o mais virtuoso menestrel, e aos doze já havia composto baladas sobre mitos e lendas antigos.

Mas nem heróis nem feiticeiros do passado o inspiravam mais do que as histórias dos deuses de Arton.

Por sua vida, sua missão fora exprimir toda a divindade, toda a glória e todo o poder que representava os deuses nas notas que imprimia no papel, mas nunca obtivera êxito, seus concertos e sinfonias nunca estavam à altura. E depois de uma vida inteira de fracasso, começava a acreditar que essa era uma tarefa impossível.

Até a inspiração lhe surgir como um presente.

Nunca havia se dedicado ou se concentrado tanto a uma obra em toda a sua longa vida, a essa altura, era como se cada rabisco, cada pausa, cada frase do coro, cada timbre e tom tivesse um pedaço de si mesmo.

As notas musicais dançavam entre as oitavas que subiam e desciam em elegantes padrões, cujos instrumentos conversavam entre si em um intrincado complexo de perguntas e respostas que formavam quase um diálogo. Eram os deuses falando através de sua música!

Chegara no terceiro e último movimento.

A música chegava em seu clímax, o momento em que os violinos, os alaúdes e os tambores, as cornetas e as gaitas se uniriam ao coro em magníficos acordes, que finalizariam bruscamente, silenciando a orquestra, terminando o concerto.

Quando começou a passar para o papel timbrado as notas do último movimento, pôde ouvir com clareza as melodias e os acordes de sua música. Não como em sua imaginação, tampouco como se alguém as tocasse. Não ouvia em sua mente e nem com seus ouvidos. Era como se ela tocasse dentro de sua cabeça.

Era isso, recebia o último presente, a última graça de Tanna-Toh, antes de finalizar sua tarefa!

A música ficava mais alta conforme avançava no clímax, o som dos tambores retumbava em sua mente, fazendo-o sentir sua caixa craniana tremer a cada batida.

A finalização, então, atingiu sua mente como o resto da composição. Uma única nota curta tocada por todos os instrumentos que dariam um fim ao concerto. A última colcheia fora escrita.

Mas, mesmo depois de afastar tremulamente a pena do papel, a música permaneceu, e ainda estava lá, sendo executada por mil alaudistas e violinistas dentro da sua cabeça, ficando mais alta a cada instante.

O frenesi deu lugar ao medo, e o deleite deu lugar à dúvida.

“Seria isso não um presente, mas uma maldição?”

Passou os olhos pela composição que acabara de escrever para ver se tinha errado alguma coisa. Não havia. Estava perfeita e irretocável, a maior obra que já havia escrito.

Então por que a música não parava?

A intensidade se tornou insuportável. O bardo colocou as mãos em seus ouvidos na tentativa de cessar a orquestra sombria que tocava. Mas ela continuava lá, ondas sonoras percorrendo seu corpo.

Tentou, então, gritar, gritar a plenos pulmões, gritar mais alto que aquela música. Mas a essa altura mal podia ouvir sua própria voz.

Injusto!

Viu os papeis meio amassados que acabara de escrever. Era isso, percebeu que devia pagar um preço por criar algo tão perfeito. Tanna-Toh não daria tal dádiva sem cobrar um preço.

Pegou os papeis preenchidos por sua obra, as amassou em um desespero louco, mirou sua lareira acessa e atirou os papeis na direção do fogo.

Nenhuma glória vale tal tortura!

Observou enquanto as partituras crepitavam nas chamas, esperando que a música que escutava cessasse, à medida em que virassem carvão suas notas musicais, suas pausas, sua glória.

Mas não.

Percebeu enfim a verdade.

Naquela composição não estava Tanna-Toh, não estavam os sentimentos infinitos e divinos dos deuses. Aquilo não era um presente.

Ahamorin, o bardo, havia depositado naquelas partituras sua alma, e apenas sua alma morava naquelas linhas. Formara um elo com sua composição que era mais forte do que qualquer feitiço arcano, qualquer prece clerical, qualquer truque de mágicas.

Queimando estava sua obra, e com ela sua alma.

E queimando com sua alma, estava seu corpo.

Em meio à fumaça que era expelida de suas mãos, braços, pernas e olhos, mesmo sentindo seu corpo queimar por dentro e por fora ao mesmo tempo, concluiu:

Esta é uma marcha fúnebre, um réquiem.
Um réquiem para mim.

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