[Conto Tamu-ra] Santuário dos Cães Vermelhos - completo

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Antonywillians
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[Conto Tamu-ra] Santuário dos Cães Vermelhos - completo

Mensagem por Antonywillians » 28 Fev 2020, 15:10

Este é um conto de uma antologia que estou escrevendo que se passa em Tamu-ra. Através deles pretendo apresentar alguns personagens e treinar minha escrita. É o primeiro conto em Arton que escrevo faz muitos anos, então pode ter mudado algo no estilo de escrita. Por favor, não retenham suas críticas.

O conto abaixo acabou ficando bem grande afim de apresentar os personagens de um futuro romance.

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SANTUÁRIO DOS CÃES VERMELHOS



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Autor: Antonywillians

As nuvens avermelhadas sangravam em pleno meio dia. Um ano havia se passado desde a libertação das terras outrora conhecidas como o Império de Jade, mas a natureza não estava ainda totalmente recuperada. Ao observar os céus ao nordeste da ilha ainda era possível ver marcas como feridas abertas tingidas de um vermelho alheio e borrado.

Vermelho. Eis a sua cor preferida. Com diversos entretons e signos era capaz de promover sentimentos fortes sempre que vistos. Em seu idioma Akai era o vermelho expresso pelo sangue, rubro, intenso que trazia as paixões, fossem amores ou ódios. Simbolizado pelo fogo, era a ruína dos inimigos, a punição dos desonrados e nuance da seiva que corria por dentro das árvores que há muito seu clã plantara naquele vilarejo devastado pelas aberrações.

A lâmina escorria o sangue queimado dos inimigos. Um tom que nunca antes havia presenciado, tão borrado quanto aquele céu maculado. Kurenai era outro termo em seu idioma nativo para um vermelho que tendia ao misterioso, um obscuro refinado presente nas pétalas dos jardins de carmim que enfeitara aquelas ruas em tempos melhores. O carmesim era profundo, indecifrado e inspirador, como o clã rival que disputava nos artifícios marciais enquanto se debruçavam sobre os estudos das técnicas de execução e o segredo dos homens.

A blasfemidade borrada escorreu respingando no solo pútrido e arenoso que antes compusera as ruas de sua cidade natal. Não havia nome para aquela tonalidade corrosiva, asquerosa e irreal que manchava firmamento, pedra e mesmo o vento. Isso incomodava o velho samurai vermelho. A cor dos clãs eram mais que vaidade, significavam sua fé, honra e impedia com que se manchassem com o sangue de seus rivais derrotados. Os Cães Vermelhos foram derrotados, corrompidos e deformados em coisas assombrosas que rastejavam por aquelas ruínas, grunhindo perversidades enquanto tentavam em vão expulsar o invasor que um dia nascera naquele mesmo local. O vilarejo montanhês de Beni’hi.

Ao sopé do majestoso Monte Barukan, um vulcão ativo tão ancestral quanto aquelas terras, ergueram a cidadela dos Cães Vermelhos, homens com espírito quente que desenvolveram suas técnicas de luta sob os auspícios do Senhor do Fogo, o Daimyô Fai’Huijin, nada menos que um dragão celestial que mora e faz parte do próprio Monte Barukan. Mestres em artes marciais unidas às brasas e de temperamento ardente, os clãs ali serviram por anos aos Shoguns e Imperadores como executores de elite especializada em eliminar espíritos desgarrados. Poucos devem ter sobrevivido ao se espalharem quando a tempestade de fogo chegou, o que seria difícil dizer, pois naquela época Zhao já havia partido para terras ocidentais.

Zhao Hiruma, conhecido pelos de sua terra a oeste como Akainu, o Cão Rubro ou Executor de Sckhar, um samurai temido em terras ocidentais e esquecido nas orientais. Desde que terminou seu treinamento sob o Monte Barukan deixou Tamu-ra e seu dojo para servir no estrangeiro expandido o conhecimento de suas técnicas em templos que haviam migrado há muito para as paragens exóticas além dos mares. Um dia soube da chuva demoníaca que assolou sua região, entretanto mesmo após cavalgar incessante pelas perigosas Montanhas Sanguinárias até o ponto mais perto do arquipélago tamuriano, foi incapaz de prosseguir ao ver apenas as nuvens corrompidas e peçonhentas que devastaram seu lar. Desde então se entregara ao serviço e devoção ao Rei dos Dragões Vermelhos Ocidentais, Sckharshanttallas, tirano de um reino vulcânico e opressor.

Zhao Akainu guardou a espada na bainha de detalhes dracônicos, sempre mantendo a mão esquerda sobre a guarda. Precavido caminhou mais um pouco passando por cima dos três mutantes cheios de carapaça que um dia foram mercadores e moças no cotidiano do vilarejo. Seu cavalo Umayado relinchou de longe, em um local seguro, mas parecia incomodado. Zhao sabia, vira por vezes o vulto ágil que subia e descia entre os escombros do local, lhe espreitando enquanto dava cabo dos demônios.

Após uma cusparada para retirar o sabor férreo do ar, entrou em um antigo casebre que ficava próximo ao mercado de peixes. O local havia sido saqueado, inclusive o corpo decomposto de um dos atrevidos residia agora ali, repleto de vermes pustulentos. Zhao agachou e após uma breve prece cutucou o cadáver com um galho próximo. O corpo estava inerte e semidevorado, mas com certeza era humano e recente.

- Os cinco infernos devem estar lotados desses miseráveis... – resmungou baixo enquanto por trás se aproximou o som do cajado batucando o chão a cada passo do velho macaco.

- Essas pobres almas entregues a desonra tentam ainda se agarrar a qualquer meio de sobrevivência – disse o homem-macaco vanara idoso, já torto pela idade. Se aproximou com um sorriso gentil do corpo e segurando um colar de contas se colocou do lado do morto – Sob o casebre. Dorme o espírito. Já moribundo.

A prece recitada em forma de poesia purificava o corpo o livrando dos vermes e salvando aquela alma que seguia para ser julgada além da ferida nas nuvens. Zhao admirava o poder de seu povo que tivera tão pouco contato em décadas. Andou pelo aposento enquanto o monge Sanzhang terminava os ritos de purificação. Não havia ossos de corpos antigos, a mobília de madeira estava quase toda decomposta e derretida, enquanto as paredes apresentavam marcas da corrupção em forma de veias pulsando depravação vermelha que logo eram desfeitas ao encostar qualquer objeto virando esporos ao vento.

- Arrgh! Esse miasma está cada vez mais fraco, e mesmo assim é asqueroso – Zhao comentou já se retirando do casebre enquanto batia violentamente com a mão em seu kimono de viagem para remover os esporos que irritavam sua pele.

O velho Sanzhang o seguiu ajeitando a farta barba com a cauda.

- Por quinze invernos Tamu-ra esteve sob o domínio desse miasma corrupto, onde criaturas das mais desprezíveis tinham projetos apenas de avassalar e torturar o que não fosse da realidade deles. Curar todo esse mal é difícil, meu caro samurai, pois não? Aqui é um dos lugares mais atingidos, contudo veja... – o varana agachou e após um tempo espanando a terra com a mão revelou um pequeno broto por entre as raízes de uma árvore morta - A fraqueza desse mal já é aparente. Lin Wu nos agraciará a cada dia por termos resistido!

Zhao ficou pensativo.

- Venha, deve haver outros corpos para serem purificados e eu tenho outros lugares para visitar.

O vanara caminhava com lentidão e recurvado, mas sempre atento. Não ao perigo, e sim aos detalhes.

- Aliás, caro bom homem. Por que entrara naquele casebre primeiro antes de qualquer outro?

Zhao estremeceu, engoliu em seco e preferiu o silêncio. Sanzhang sabia, vira nos espíritos que estavam ali acorrentados o sorriso ao encontrar Zhao dentro da cabana. A mais jovem chorava em alegria, a primeira que o mesmo amara, com promessas nunca cumpridas de voltar por ela. Um amor proibido entre um filho de samurais e uma filha de mercadores de peixes. A purificação os libertara, mas não mais que a lembrança do velho Zhao.


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A antiga Beni’hi havia sido uma aldeia movimentada, com camponeses transitando para trocar seu arroz recém-cultivado, os templos da Família Celestial e Lin Wu enchendo de cores e luzes em luminárias festivas Chôchin acendidas em querosene ou magia. Os bares izakaya de comida rápida sempre cheios com os sakês mais quentes do reino, os bordéis e teatros de sombra com apresentações de peças renomadas, as casas de chá e banho lotadas com fregueses que vinham de todos os cantos para conhecer as gueixas das terras de fogo, além das apresentações feitas em meio as ruas de artistas ambulantes que traziam sua arte. Tudo sob o olhar atento de Fai’Huijin, sentado em seu trono nas caldeiras do Monte Barukan, servido por sacerdotes que ocupavam seu templo-palácio sobre os telhados de palha da cidadela com a alta torre onde moravam seu harém, a família de humanos e meio-dragões que lhe descendiam.

Zhao lembrava de ter uma história de sua infância em cada beco e viela, além do nome das pessoas memoráveis que abaixavam a cabeça sempre que passava, principalmente após se tornar sensei no próprio Dojo. Hoje sobrara não mais que um reflexo corrupto daquela época. Chegou a visitar os antigos jardins de carmim, mas ali haviam apenas arbustos queimados e retorcidos que lutavam contra o mal que lhes fora causado. As veias malignas dos akuma ainda pulsava em chãos, muros, enrodilhando postes de luz e mesmo assumira em certos pontos o formato dos arcos de portais torii, pulsando anátemas e imprecações que se dissipavam ante ao fio flamejante de sua katana.

Sobre um remoto tanque de um lago de carpas via cadáveres frescos e devorados boiando em uma água avermelhada pegajosa onde peixes koi cheios de espinhos e olhos no lugar de escamas os devoravam enquanto brigavam às dentadas pelo domínio das carcaças. Sanzhang se aproximou e tirou os chinelos de palha, mergulhando os pés símios na poça nefasta. Zhao logo se pôs a tentar puxá-lo imaginando que contratara o monge mais gagá da região para ajudá-lo, até que viu dos pés do velho surgir uma luz branca e plácida como a emanada pelos primeiros raios de sol ao tocar um lago. As carpas monstruosas grunhiram e se debateram até aos poucos ficarem em paz e quietas, deixando suas almas presas serem livres. A tonalidade da água logo foi retomando sua coloração translúcida e pura. Um gesto da cabeça o Vanara indicou o que o samurai deveria fazer. Descendo no tanque miasmático com as próprias pernas, ergueu o corpo molhado de cada cadáver, mas antes que fosse capaz de colocar em terra firme, se desfaziam em pó e carpas que voltavam a cair no lago vivas e limpas de qualquer miasma. Agora puras e alegres.

Uma rã de cinco olhos, dentes afiados e três pés mergulhou deixando para trás sua corruptela e nadando em meio aos peixes. O Vanara sorriu lembrando de um antigo poema.


Furu ike ya ___________ No Velho tanque
Kawazu tobikomu ______ Mergulha a rã
Mizu no oto __________ Som de água


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Matsuo Munefusa, ou monge Sanzhang, era um Vanara, a raça dos homens-macacos que já vivem nas montanhas de Tamu-ra por gerações. Estudioso sobre os espíritos e a linha que separa a vida e morte, tinha como objetivo harmonizar os vivos com os mortos, procurando ajudar cada qual a se livrar de suas mazelas e limpar as impurezas na comunicação entre os mundo. Poucos sabem de onde veio e quanto tempo tem de vida, tendo aconselhado grandes senhores da guerra em eras passadas, sendo amigo de espíritos nas florestas e até mesmo instruído por diversas regiões o Dharma, como chamam os ensinamentos de Lin Wu. Foi mestre de muitos e viveu pessoalmente o dia do cataclisma rubro.

Saboreando um ótimo sobá quentinho e um sakê vindo dos arrozais sulistas, descansava no bar de uma pequena e simples travessa na cidade de monastérios de montanha na qual estava de peregrinação, a famosa Budo’tsu. Foi quando o vento lhe soprou sobre o perigo iminente. Mesmo contra seus comuns pudores com comida, teve de deixar por terminar e fechar os olhos enquanto posicionou as pernas cruzadas em lótus. Quando sua visão se fechou, viu a vermelhidão sarnenta que tomou a tudo e a todos. Sua meditação contemplou quem estava nas redondezas e logo o tempo foi transportado, congelado, como uma bolha de ar que sobrevive submersa. Os céus foram tomados por nuvens de um rubro nauseante, raios perseguiam qualquer alma viva nas ruas as carbonizando onde estavam e estourando as casas de bambu as voltas. Não havia incêndio, nem fogo. Só a corrupção. Ela queimava a tudo e todos, até que vieram as primeiros pingos de odor ferroso.

Choveu dor em forma de gotas de sangue ácido que derreteu pele, ossos, espadas, magia e mármore. Templos foram deformados enquanto as veias viciosas assumiam formas e invadiam tudo que podiam consumindo a vida e a realidade sob o chiado da tormenta rubra que se acometeu sobre aqueles povos, para então vir o pior. Os Akumushi, os próprios demônios de formas insetóides que transcenderam a própria existência, apresentando membros e corpos feitos em ângulos e simetria impossível. Esses desceram dos céus e surgiam de lugar algum consumindo, depravando, tragando e conspurcando tudo que se movia.

Sanzhang observava do alto, em sua contemplação, salvando aqueles que conseguiam alcançar as graças de sua paz pura, inclusive inspirando outros monges a fazer o mesmo. Alguns preferiram o confronto, e pereceram. Desarmados foram até mesmo capazes de esmagar algumas carapaças, a resistir o estouro dos raios, desviar de cada gota de corrupção e mesmo de lutarem fora de seus corpos atacando pelo mundo físico e etéreo. Mas não foram capazes de deter o alto rugido que veio no terceiro dia. Uma enorme montanha de horror se ergueu podendo ser vista de toda a ilha. Seus muitos olhos, sua sede demente por destruição e massacre e sua força avassaladora levou ao fim dos espíritos apenas por sua presença. A coisa era o imperador de crueldade imbecil, o colosso daquela realidade irreal. Seu rug
ido atravesshg’nglui mglw’nafh fhtagn wgah…


Wzapy’ei dho’hna, Yr Nhhngrty?



O
monge teve que parar de ver. De ouvir. Sentir. Existir. E assim foram salvos da contrafação do real que se alastrou por Tamu-ra durante quinze fatídicos anos. Sua existência aos poucos foi se acomodando àquele espaço e tempo enquanto ainda havia os fragmentos da realidade, sendo que dali ainda pôde alcançar almas perdidas e as acalentar em meio ao desalento espiritual que passaram a subviver. Através de conselhos e poemas manteve alguns próximos a sanidade e disciplina. Até o dia em que o Lorde de horror inominável e onírico se foi para outros mundos, enfraquecendo a impureza que deixara até que seus súditos mais poderosos foram destruídos e o arquipélago retomado pelo povo que lhe tinha de direito. O vanara, despertado pelo céu sem nuvens e de um azul cintilante, ficou feliz ao ver seu lanche intocado pelas feras aberridas, pelo tempo ou mesmo pelas moscas, podendo finalizá-lo antes de partir em missão expurgando e acolhendo com caridade os necessitados.

Com as costas curvadas, os pêlos espetados com sua cor alaranjada já bastante claros pela idade, a farta barba envolta do rosto enrugado e movimentos leves, Sanzhang se apoiava em seu bordão de bambu levando sempre bolsas e cilindros mágicos com cintos que ficavam sobre sua túnica verde, carregando papiros, pergaminhos e tomos onde reunia seus saberes e poemas.

Seu pseudônimo Sanzhang era um termo usado para sábios errantes que tinham por objetivo explorar e cuidar dos povos tamurianos, e hoje estava ao lado de Zhao Akai afim de purificar aqueles que há muito caíram nas desgraças de seu vilarejo arruinado.


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O Monte Barukan ainda era uma visão magnânima, mesmo repleto de partes espinhentas e sua cratera esculpida na forma de uma bocarra abissal dentada. Era o senhor de toda região e trono de sua senhoria, o dragão celestial Fai’Huijin, aquele que decidia o destino de quem vivia em seus domínios. Sua fúria incansável lançava desde eras atrás uma fumaça negra aos céus com fuligem e cinzas que por vezes se adensava ou diminuía conforme o humor de seu divino habitante. Entrara em erupção algumas vezes, mas nunca causara verdadeiros estragos a Ben’hi, sua lava pelo contrário corria como rios que usavam para forjar as lendárias Katanas Ben’hi, com lâminas feitas do metal vítreo vermelho-escuro capaz de se imbuir em chamas através do espírito guerreiro de seus samurais.

Hoje em dia a forja havia sido deformada em um monte de partes mutiladas e agregadas em esculturas malignas pelos demônios que criavam com sua matéria vermelha constructos de maldade e impureza. Zhao desejava resgatar alguns artefatos ali, mas só o mal-cheiro foi suficiente para se arrepender com a possibilidade de levar apenas maldições consigo. Sanzhang se posicionou a seu lado e começou uma prece mântrica enquanto o samurai desembainhou sua katana que explodiu em brasas. O samurai deu um passo à frente e em poucos movimentos rápidos com as mãos fez magicamente as chamas de sua lâmina serem sugadas para sua boca e narina. Concentrado, abriu os olhos que se tornaram reptilineos e emitiu um poderoso rugido com um sopro de chamas mágicas que envolveram a estrutura derretendo e derrubando as poucas colunas de sustentação. Se um dia a forja voltasse a existir, teria que ser renascida, limpa de seu passado escabroso.

- A baforada de meu senhor Sckhar sempre me deixa uma secura na garganta – comentou breve abrindo uma cabaça hyôtan em que guardava água pura e deu alguns goles. Percebeu o que dissera e seguiu seu caminho com as mãos por dentro do kimono – Que meu senhor não tenha escutado essa.

O velho vanara ficou um tempo olhando a antiga forja que se desfazia em estrondo como se urrando de dor ou mesmo felicidade por ter sido liberta. Zhao Akai pouco falava, mas desde que o encontrara na casa de chá no vilarejo em que lhe abordou para convidar para a missão, e em todo o trajeto até ali, o pouco que comentara fora sobre a importância daquele local e o talento dos artificies que ali se formaram. As ruínas de seu passado deveriam assombrá-lo pelos próximos anos. Sanzhang fez um poema em sua mente, reverenciou contemplativo e seguiu atrás do samurai enquanto colocava uma mão nas costas sentindo um pouco de dor pela longa caminhada.


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O cadáver do palácio real jazia em nossa frente. Como uma carcaça carnicenta de muitos metros de altura, a estrutura resistira em pé e roída pelos akuma. A sua volta, os bairros nobres tinham sido todos saqueados de vida e riquezas. Contudo, Zhao não procurava ouro, esse já recebia aos montes por seu serviço nas terras ocidentais. Sua busca eram os artefatos de seu clã. O complexo de monastérios dos cinco clãs de Cães Vermelhos ladeavam a avenida que levava aos restos do palácio.

Cofiando o cavanhaque, Zhao lembrava sua infância e adolescência há mais de seis décadas atrás por aquelas ruas. As broncas que levava por sair no soco com filhos de camponeses em público. Os sorrisos de meninas e depois damas púberes que conquistava ao derrotar os mais fortes que lhe desafiavam, e mesmo quando era ele mesmo derrotado e se levantava zombando. Via quase que alucinando seus mentores desacreditados tendo que lidar com o prodígio indomado, motivo que acredita ter sido o tê-lo sido obrigado a partir para terras distantes. Nunca havia percebido, mas já maduro enxergava bem como fora sutilmente exilado afim de não desonrar mais a tradição de seus pais.

Passou pelas ruínas do complexo do Clã Beni, os primeiros a receber os ensinamentos marciais de Fai’Huijin. As estruturas que sobravam ainda revelavam os inúmeros jardins devastados e pagodas caídas que um dia pertenceram aos maiores artistas de cerimônias contemplativas, fossem músicos reais, mestres de chá, calígrafos que pintavam em pigmentos brasis ou mesmo dançarinos do fogo. As obras de arte não mais eram acessíveis pelo que podia ver. Chegou a pisar no saguão do grande museu do clã e só haviam restos, alguns alterados pelos demônios. A parede abria um buraco dentado que se mexia tentando se fechar em uma agonia que nunca acabaria. Zhao receou e procurou com olhar Sanzhang, mas nem sinal do velho símio… Devia ter parado para descansar, orar algum corpo ou só escrever poemas admirando paisagens.

Com cuidado atravessou o arco monstruoso e se encontrou entre as paredes do complexo monasterial do Clã Shuiiro, de onde vinham os maiores sacerdotes e monges da região, capazes de agraciar o Daimyô com honras, servir o grande Lin Wu em uma torre que já teve doze andares no passado com uma grande estátua do deus-dragão (antes de ser explodida por um dos raios demoníacos), zelar pelos espíritos dos ancestrais através de um cemitério de placas de bambu e monumentos de mármore, não de surpresa já todo remexido, e uma pagoda onde descansava a fé na Família Celestial que cerca Lin Wu.

A fé de Zhao já pertencia a outro senhor, mas não deixou de prestar respeito e se entristecer pelo ambiente sagrado que fora profanado. Foi quando de um antigo dormitório ouviu um alto rugido seguido do estilhaçar de uma parede de madeira quando três criaturas aberrantes e insetóides foram arremessadas no meio do pátio. De pronto Zhao empunhou sua Katana, se preparando para a vinda da coisa que estava furiosa ali dentro. Dois ogros, um azul ciclope com um único chifre e um vermelho, muito maior, com dois chifres e três olhos saíram irritados carregando corpos semi-devorados.

“Urgharlu e Urghardurr ser novos senhores daqui! Vucês vazar!”, bradou o azul batendo contra o peito desnudo repleto de cicatrizes como se fosse um gorila. O vermelho avançou erguendo um enorme porrete Tetsubo de madeira negra contra as criaturas quebrando a carapaça que mesmo assim só parecia disforme.

“Nós aqui reinaaar!!! Deixar nossa curmida!”, o vermelho berrava em algo misturado e ódio ao mesmo tempo. Era possível ver que sua cabeça era encoberta pela massa de matéria vermelha borrada akamono onde um dos olhos protuberantes vinha da irrealidade. Ignorantes e bestiais, jamais que aqueles ogros Oni seriam capazes de saber.

As criaturas demoníacas insetóides avançaram sobre o ogro vermelho atacando sem recear com suas enormes pinças afiadas e cuspindo ácido pelas quelíceras horrendas em seus fucinhos. A criatura parecia ignorar a dor ante sua fúria e só voltava a girar sem controle sua tetsubo até que uma das coisas caiu se contorcendo ao chão e expeliu suas entranhas por uma cavidade. O Azul bateu as palmas das mãos e pareceu conjurar fogo da mesma tonalidade de sua pele, seguindo com socos e brutalidade sobre outra das criaturas. A cada golpe espirrava sangue, a cada espirrada uma parte de sua pele fedorenta era corroída, a cada dor mais raiva. Zhao Akai sem demora aproveitou a distração e correu contra o Oni vermelho passando para trás dele e em um rápido movimento passou o fio da lâmina sobre a matéria aberrante que cobria sua cabeça e descia até o final das costas. A coisa chiou em dor enquanto as labaredas se espalhavam.

O Samurai Rubro foi percebido, porém já tinha preparado sua estratégia. Com a lâmina de sua espada sagrada em riste se preparava para a investida do espírito ogrento. Ryukage, a Sombra do Dragão, era uma arma especial. Fundida a partir da baforada sacra de Fai’Huijin, martelada na antiga forja de Beni’hi, entalhada por artificies de uma distante aldeia e por fim abençoada por Sckhar quando Zhao se tornou o primeiro samurai executor em prestígio por sua rara lealdade e serviço. Esta guardava um poder capaz de queimar a própria luz do sol. O soco que recebeu fez seus pés firmes arrastá-lo poucos centímetros do lugar enquanto o Oni perdia alguns dedos que logo eram cauterizados pelo intenso calor, soltando um urro.

- Ryukage é capaz de fazer arder até os cinco infernos, criatura – Zhao se gabou aumentando a intensidade das chamas na lâmina, alimentadas pelo seu próprio espírito – Saiam de meu vilarejo… O fio e as técnicas que porto são para caçar dragões, não quero impurificar mais de toda imundice que vocês trazem!

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O Oni vermelho irritado ao ver o companheiro socar o chão insanamente para aliviar a dor dos dedos perdidos, enquanto sua cabeça amaldiçoada pegava fogo, agarrou a clava tetsubo que emanou um turbilhão flamejante azul e desceu contra o samurai. Zhao se esquivou e contra-atacou aproveitando a abertura para acertar o olho demoníaco do oponente. A coisa pérfida abriu uma bocarra que se ocultava sobre a nuca do espírito maldito, removendo os dentes que deviam ir até as profundezas do crânio do hospedeiro. Era um parasita simbionte da tormenta, e em poucos minutos seria apenas cinzas de akamushi naquele solo santo.

Um dos demônios insetóides avançou, com asas surreais que mal poderiam ser contadas pelo borrão que deixavam no ar, mas recebeu apenas a clava em brasas mágicas que o arrebentou ao meio jogando nojeira incandescente por todos os cantos. O Oni azul tirou uma cabaça hyôtan presa na tanga de pele costurada de ratos que trazia à cintura, deu alguns goles e arrotou uma baforada de fogo azul sobre Zhao que não teria tempo de se esquivar. O calor era intenso, derretendo a parede de uma estrutura próxima que tombou e mesmo fundindo parte do chão no pátio que liquefez a pedra derretida. Zhao fechou os olhos em meio ao ataque e com um único movimento ágil e preciso sua lâmina entrou pela bocarra e trespassou a nuca perfurando qualquer cérebro que o espírito cíclope pudesse ter. Dentro do sopro de fogo azul, o dourado da lâmina de Ryukage prevaleceu emanando faíscas na forma de pardais cintilantes com meio segundo de vida que logo se desfaziam em brilho.

Abriu os olhos emanando uma presença aterradora que espantava qualquer miasma negativo de seu corpo e antes de guardar a katana fez alguns movimentos rápidos removendo os chifres das bestas. Assim nenhum Oni poderia retornar a vida. Seus trajes e pele estavam quentes, sem nenhum traço de ferimento, a única coisa exótica era o revestimento de escamas que lhe encobriam o corpo e os olhos reptilineos. Um efeito que a benção de Sckhar lhe dava quando concedia sua imunidade ao fogo.

Continuou sua caminhada enquanto bebia mais um pouco de seu cantil de cabaça.


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O dojo do Clã Akai só foi acessível após Zhao subir alguns escombros repletos de massa irreal demoníaca com olhos e bocas que abriam e fechavam. Exterminando aquelas existências com o foco de sua própria lâmina, finalmente chegara a seu objetivo.

O complexo de moradas no dojo onde nascera e fora criado estava repleto de corpos consumidos tanto de desafortunados que ali estavam durante a chegada das nuvens Akamushi, quanto recentes saqueadores pegos pelos corruptos. Muitos não eram mais reconhecíveis, apesar que sabia ter alguns ali que fossem amigos de infância, mentores, rivais de luta dentre outros que as décadas fizeram o favor de apagar de sua memória.

Recordava momentos e chegou mesmo a por pouco perder um pouco de sua compostura rígida moldada a fogo tocado por seu passado. Visitou a antiga cozinha-comum, tomada por crânios, subiu no pavilhão que dava a melhor vista para o Monte Barukan e o castelo logo abaixo, e interrompeu seus passos quando encontrou os pesados portões de aço do arsenal do clã ao chão e amassados com parasitas simbiontes ainda consumindo a realidade do metal. Armas e armaduras lendárias foram saqueados.

Um relâmpago agourento clareou ao alto e um trovão ribombou pela ferida das nuvens pouco antes de uma fina chuva descer como um véu lavando a corrupção da Tormenta. A água ainda tinha cheiro horrível de enxofre, mas não era algo mais perigoso. Antes que sua roupa ficasse toda encharcada entrou em um casebre que conhecia muito bem. Era o seu lar, berço onde chegara décadas atrás o menino Zhao Akai. Era estranho, pois mesmo destroçada por dentro, ainda que constando com alguns cadáveres deformados e mutantes, podia sentir o calor da casa.

Em silêncio se sentou próximo ao local no qual ainda estavam dispostas as pedras onde se esquentavam gravetos para cozinhar em panelas de laca o arroz de todos os dias. Abraçou sua katana envolta pela bainha e acendeu seu kiseru, um longo cachimbo, com um pouco de tabaco misturado com ervas tradicionais. Não havia paz naquele mundo, mas a chuva trazia um pouco para dentro de seu anoso teto.


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Os pés cansados do monge Sanzhang já chapinhavam nas poças deixadas pela garoa. Não se incomodava, até achava engraçado sua túnica embebida. Após descansar um pouco aproveitou para conversar com alguns espíritos errantes que estavam pelo vilarejo, os recebendo com hospitalidade no mundo dos vivos antes de purificá-los devidamente.

O corcel do samurai galopava bufando nervoso para perto do vanara em certo momento. Batia os cascos e olhava irritado para o topo dos prédios como se visse algo, e o monge também observara. Com breves carícias no focinho acalmou o equino e fez um sinal convidativo para o alto com o bordão, em seguida se virou segurando as rédeas e puxou a montaria consigo para dentro do vilarejo em direção onde há pouco ouvira explosões e viu o clarão de chamas.
Alguns passos sob a chuva e logo encontrou a carcaça esquelética de um velho mercador de chapéus cônicos caído com a mandíbula deslocada. A seu lado uma carroça velha e maltrapilha tombara os barris ainda lacrados, afinal porque aqueles seres pavorosos viriam de outra realidade para pegar meros chapéus. Riu achando bobeira.

- Meu bom homem, seu sofrimento já foi demais nessa vida… Sua honra foi mantida como camponês, mas nunca foi capaz de entregar seu fardo – fez uma reverência para o mercador translúcido de olhos vazios que se assustou quando o monge se dirigiu a ele. O cavalo Umayado bufou horrorizado.

“Você me vê? Você me entende?”

- Pois não? Ouço e o liberto dessa sina – pegou suas contas e balançou recitando alguns sutras de Lin Wu – Parta e peço por gentileza um chapéu que proteja esse pobre macaco de uma severa gripe. Huhu. Meus ossos já não são mais os mesmos nesse frio!

O espírito sorriu em resposta e fez seu último gesto de mercador enquanto seu éter e palavras puíam ao vento.
“Leve quantos quiser, dessa vida nada levamos para outra...”

“…nem o ouro, nem as glórias. Somente o espírito e a honra”, Sanzhang completou sorrindo, “Esse era um entendido dos sutras do Dragão!”

Com um breve momento o vanara bateu com seu bordão de bambu e abriu a tampa do barriu de onde vieram chapéus de palha cônicos jingasa, meio afetados pelo tempo, mas até que bem conservados. Pegou cinco, colocando um sobre a cabeça e outro na de Umayado.

- …viu que gentiu, vaquinha? – deu uns tapinhas amigos no dorso do cavalo que se irritou batendo os cascos – Vocês também…

Umayado relinchou assustado quando das sombras veio uma massa redonda de carne e pele repleta de olhos que abriam e fechavam com bocas dentadas que matraqueavam insandices. O Vanara meramente cobriu a coisa bizarra com outro chapéu e entregou mais um na maior das bocas antes da aberração flutuante retornar para a escuridão onde os olhos de sua dona brilhavam atentos.

- Não tenha medo, mimosa. Você não acha uma fofura? – sacudiu o corpo símio removendo o excedente de água e prosseguiu - Vamos porque esse é um sinal de que chegamos a nosso objetivo.


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O santuário dos Cães Vermelhos Akai era o solo mais sagrado em seu sangue. Ali em um altar, já hoje muitas vezes profanado, abençoavam aqueles que nasciam e morriam nas famílias que serviam diretamente como executores de Fai’Huijin.

Zhao estava de joelhos, em silêncio fazendo sua prece quando sentiu a aproximação. Primeiro o ar foi impregnado com aquelas coisas irreais, depois os passos malignos ofendiam um ancestral seu a cada momento que pisava atrás do altar. O Cão Rubro nunca tivera medo, pelo menos não até aquele momento. Engolindo em seco preferiu se dar um tempo antes de visar aquele que entrara.


Ora ora, veja quem retorna ao Dojo!? Meu aprendiz mais ferrenho…, a voz vinha como uma faca. Era a mesma de quando o vira na última vez, porém cacofônica como se pronunciada por dezenas de bocas diferentes, vibrando pervertida e contaminada. Aquele que desonra a família se deitando com mercadoras e apanha dos filhos de camponeses imundos. Aquele que matou a própria mãe por desgosto e ainda ofendeu a todos lançando suas cinzas sobre o altar! Como ousa pisar nesse domínio novamente?

Zhao abriu lentamente os olhos deixando a profana luz vermelha entrar por sua retina e queimá-lo, dor a qual nunca mais sentira. Era um samurai. Um cão vermelho. Lagrimejou e resistiu.

Moscas, ou o que deveria ser similar a uma, formada por pele podre envolta de olhos assombrosos de veias sobressalentes o cercavam por diversas direções mirando e analisando cada parte sua sem piscar. À frente do altar a visão que tinha era borrada e trêmula, mas ainda conseguia enxergar e manter um pouco da razão. Ali estava o que restara se seu principal mentor. Um humano alto para seus padrões que tinha na cabeça longos cabelos negros presos em um coque (um olhar mais atento perceberia ser algo similar a um arame ou carapaça que lhe coroava, com espinhos vivos se mexendo, ou eram pernas aracnídeas?). O semblante estava deformado, mas ainda humano. A boca sempre fechada costurada, o nariz com a cicatriz que recebera em batalha muito antes da Tormenta atingir sua cidadela e os olhos… O que havia acontecido?! Sem dúvidas na loucura que o tomou ao ver a irrealidade arrancara os próprios olhos com as unhas. Ali só havia um vazio preenchido com matéria vermelha akemono porosa onde as minúsculas moscas-olhos pareciam brotar e retornar como uma colmeia.

- Eu vim em redenção! – suas palavras provocaram uma risada debochada e muito alta que veio de todas as bocas vivas que tinha espalhadas por seu corpo inteiro, revestido pela aberração viva que sua armadura se tornara. Mesmo mantendo a forma de uma O-Yoroi, trazia chifres e olhos que lacrimejavam sem parar de tanto chorar de rir.

Sua arte da espada realmente era uma das poucas vistas em nosso domínio, as bocas da armadura se revezavam em falar quando não se misturavam em um coro arrepiante, Mas precisaria ainda treinar mais comigo! Venha, se entregue e traremos de volta os Kami divinos que acolheram nosso clã…

Zhao se ergueu furioso desembainhando Ryukage que já brilhava forte em chamas douradas.

- Você foi meu maior mentor! Contudo, você ousou ir contra Lin Wu… Entregou nossa cidade para esses Akuma que depravaram nosso povo! MATARAM NOSSO CLÃ! COMO OUSA ME CONVIDAR PARA UM DESAFIO A HONRA, PAI!?

A coisa gargalhou novamente e os ouvidos de Zhao sangraram. O Samurai carregado em impureza havia se entregue a realidade Lefeu, como chamavam de onde vinha a tormenta de demônios. Ele era o que denominavam homem-monstro, ou Kaijin.

Ah, então agora me chama assim… PAI…, as bocas riram chistosas. Desde que sua mãe morrera e tive que dar em você uma surra no meio do funeral nunca mais ouvi essa palavra de sua boca! Mataram nosso clã? E do que acha que minha armadura é feita? Estão aqui todos vivos. Agora não levante sua voz comigo mocinho… Você não entende de nada no mundo apenas porque virou um bajulador oficial daquele dragão fraco em outras terras. Veja um pouco do universo que lhe ofereço!

Zhao Akai não pensou duas vezes e logo correu avançando na direção de seu Pai e Mentor, aquele que lhe dera a espada que hoje estava a serviço de Sckhar para caçar dragões. Ryûnosuke Akai não era mais humano e sim um monstro simbionte que deixara de ter a principal dádiva de Lin Wu, a honra. Matá-lo era mais do que preciso. Era um dever.

Os pés de Zhao não encontraram o chão e sim uma massa de carne liquefeita disforme que escorrera por uma das bocas bizarras de Ryûnosuke. Afundava como uma areia movediça e nem mesmo sua lâmina era capaz de deter a coisa, chegando a diminuir a intensidade do calor para não queimar a si mesmo. No início pensava em como se livrar. Depois percebeu que vinhas ósseas subiam seu corpo e se enterravam em sua carne. Sentiu pulsar dentro de si aquela matéria funesta e aos poucos começava a ver. Entender. Podia senti
r que a realdidfgh’mnr era nada mluggna’r wagghtf

Ry
ûnosuke não percebeu quando um chicote vermelho cortou o ar e estourou alguns dos olhos flutuantes que usava para vigiar a área. Seu foco em seu filho havia lhe deixado desprotegido. Um erro que nunca cometeria no passado. Segurou a guarda de sua própria katana abissal que soltou um grito estridente enquanto a lâmina feita de um material alienígena cortava a carne viva da bainha que expelia o sangue corrosivo sobre o chão.

A tempo aparou o golpe de uma katana muito parecida com a sua que desceu veloz contra seu corpo e com a força descomunal que a graça irreal do universo lefeu lhe havia dado.

Ahhh, Onimusha, as bocas vomitaram as palavras em contentamento por um novo desafio, E agora vejo! Trouxeram um macaco, ótimo para minha coleção!

O velho Vanara correu em socorro de Zhao lançando uma luz dourada e limpa com o poder que expurgava aquela corrupção permitindo ao samurai recobrar a consciência, a tempo de erguer uma mão e segurar o bordão de bambu do velho monge. Quase tragado pelo chão, usou a força que tinha para se puxar derrubando o companheiro macaco no chão e erguendo a Ryukage que cortou o mal que lhe puxava para dentro da massa fedorenta.

- Você não escapará de mim dessa vez, Ten-no-me! Trouxe companhia – riu a menina lefou que tinha o braço medonho já deixado de ser um chicote e se tornado apenas garras malditas.

Zhao teve sorte em ouvir o conselho do Vanara, levar a menina corrompida com eles era a melhor solução. Seria dente por dente naquele encontro. Sanzhang salvara a moça durante a Era Akumushi, ajudando com poemas com que ela mantivesse a sanidade. Com o tempo a jovem se deixou ser tocada pela escuridão vermelha que assolara seu país e assim simbiontes da irrealidade lhe condenaram a vagar como uma das aberrações em troca de ter o poder para derrotá-las. Era também era uma Kaijin, assim como uma Onimusha, caçadora de Akumas.

A jovem mulher-demônio fechou o pulso e a carne deformada correu por seu corpo criando placas ósseas de pele esticada, olhos paralisados e aos poucos uma grande lança surgiu em suas mãos saída de sua coluna. Ao fim parecia o simulacro de uma lanceira em armadura samurai haramaki. Sanzhang limpava o resto de podridão que cobria Zhao no momento em que o samurai segurava a cabeça com as próprias mãos, tentando se recompor.

Lembro de você! Me chama por esse nome e mais de uma vez tentou me atrapalhar, urrou gutural as bocas do Kaijin samurai que avançou com sua espada sobre a jovem. Qual seu nome e porque ousa enfrentar Ryûnosuke e nossa benção!?

Com a lança esquivou a força sobre-humana do oponente e com uma flexibilidade esquisita a garota dobrou os joelhos ao contrário como se fossem as pernas invertidas de um gafanhoto escapando do ataque a tempo de girar e acertar com a haste da arma no rosto disforme do oponente, de onde novas moscas-olhos fugiram apavoradas.

- Ten-no-me, o Demônio-de-muitos-olhos é como o chamam! Sei de seus planos em tentar encontrar o antigo senhor ao qual servia e trazê-lo de volta como um Akuma que você mesmo é! – aparou mais alguns ataques até que uma das estocadas arrebentou uma antena que estava em seu elmo simbionte.

Informados, vocês Onimushas, não é mesmo?, a boca que falou isso levou um chute perdendo algumas presas, outra na greva da pernas esquerda do vilão continuou a oratória. Sim, nosso majestoso Lorde Fai’Huijin-sama deverá voltar a sentar no trono de Lava de Barukan. Sob as graças dos Shoguns do universo de onde ganhamos esse poder! Imagine do que ele seria capaz! HAHAHAHAHAHAH

Outro chute na boca que ria e o Kaijin se afastou cortando o ar para afastar a jovem caçadora. Quando percebeu a distância fez sua surpresa. Da guarda da espada diversos orifícios porosos se abriram lançando um enxame do que pareciam vespas assassinas com ferrões por todo o corpo. A jovem cruzou os braços em “X” a frente de seu corpo e um grande escudo coriáceo se formou impedindo o ataque repulsivo. Ao fim, desenhou no ar com as garras uma espécie de ideograma. A cada movimento um brilho tomava a forma do selo até a imagem aparecer clara enquanto entoava um mantra breve.

Ryûnosuke tentou aparar com a arma, mas o que veio foi um trovão que cortou o santuário e o atingiu em cheio. O estrondo elétrico rasgou o ar, arremessou o oponente contra a parede ao fundo que desmoronou e dividiu o altar em dois. O desgaste arcano era claro na jovem que removeu o simbionte de sua cabeça para respirar melhor enquanto deixava aparente seu longo cabelo azulado que brilhava emitindo estática e a pele da testa emanando uma luz no formato similar do selo invocado.

Vejam só… Uma Ryûjin Kaijin. Que honra deve ser para sua raça, a voz pérfida vinha de uma das moscas que era formada apenas por uma boca enquanto centenas de outras espiavam o grupo. O vilão claramente enxergava e se comunicava assim, além da própria armadura. Logo o samurai começou a se erguer empurrando escombros pesados para os lados. Por isso deseja saber meu plano, filha de dragões? Pois bem, agora fiquei interessado. Seu sangue talvez possa me revelar onde fica a lendária torre dos sábios.

A menina fechou parte do elmo novamente afim de se preparar para a batalha, fazendo a lança se decompor e surgir chicotes tentaculares dos dedos de sua garra direita. Logo a figura se ergueu imponente ainda que com claros ferimentos, mas não empunhava a espada, ou pelo menos a arma não tinha mais esse formato. Rápido como o raio que o atingira, disparou uma flecha do arco de tendões que sua Katana se tornara. O projétil silvou e atingiu a jovem no lado esquerdo do peito atravessando a carapaça e saindo a lâmina óssea pelo outro, pingando a matéria vermelha corrosiva.

Zhao acordou de seu transe com o som surdo do baque que o corpo da jovem fez ao cair no chão. Sanzhang tentou se aproximar e foi impedido por uma flecha que silvou perigosa a sua frente. O símio estava preocupado com a forma que ela estava imobilizada no chão.

- NAOTO! – bradou tentando acordá-la, mas sem sucesso.

Então nossa Nakama tem um nome? Belo nome, mas não combina com a benção que ela recebeu. O arco novamente se tornou uma katana com dentes e olhos quando o Samurai Vermelho brandiu sua espada em chamas douradas lançando um olhar desafiador que emanava uma presença poderosa, como se personificasse a fúria dos próprios dragões vermelhos.

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Naoto Naosuke, filha da nobreza formada por leais sacerdotes imperiais Shugenja que serviam ao próprio imperador eras atrás. Responsáveis ao culto do deus dragão Lin Wu, ela tinha como dever ser a princesa consorte do clã e se casar com um bravo filho de um Daimyô. Apaixonada por outra pessoa, foi condenada a uma vida infeliz, mas no dia do casamento a tempestade veio. O palácio foi destruído, as posses corroídas e a tradição esmagada. Liberta de seu destino, descobriu que seu clã provavelmente morrera na capital quando começou o apocalipse rubro, e passou a vagar perdida esperando um dia encontrar alguém conhecido, ou quem amava. Mas só achou vingança.

Vendo vilarejos caírem pela corrupção, espíritos serem aprisionados e diabólicas criaturas tomarem Tamu-ra, a jovem tentou ajudar as vítimas com sua pouca magia nata. Chegou a se hospedar na proteção de um mago Wu Jen que lhe ensinou tudo que sabia antes de cair em insanidade e acabar abraçando a vermelhidão por si só, sendo necessário matá-lo com as técnicas que o mesmo passara para Naoto. O feito a perturbou por muito tempo. Chegou a começar enlouquecer até que sentiu estranha calma e ouviu uma voz. Sanzhang em transe suspenso a encontrou e salvou seu espírito antes que fosse totalmente confundido pela não-realidade. Com ele, seus mantras e poemas lhe ajudaram a fortificar a mente, se centrar e encontrar propósito, até que soube o que fazer.

Deixou a corrupção tomar seus braços, consumir sua carne, ossos e espírito. Aos poucos deixava de ser uma Ryûjin, nome dado àqueles agraciados por Lin Wu para nascerem nobres e honrados, filhos prodígios do grande Deus Dragão. Abandonando sua origem e benção, era consumida pela maldição. Com isso ganhou poder e armas para caçar aqueles invasores que levaram tudo que amava.



O velho Vanara aproveitou a distração e conseguiu se aproximar reunindo as últimas forças para carregar Naoto no colo afim de retirá-la dali. Recitando mantras a cada momento sentiu os espíritos que ajudara no vilarejo a erguê-la e dar forças para sair dali até o pátio a frente do dojo. Zhao estava sozinho agora.


  


Os dois Cães Vermelhos Akai lutaram. Golpes de espadas produziam um som agudo que ecoava pelas ruas nas mais diversas direções. Zhao cortava e queimava seu inimigo conjurando chamas poderosas. Ryûnosuke cortava e blasfemava, abrindo as bocarras feitas de horror em sua armadura para gotejar corrosão pelo chão até que o inimigo cedesse.

Pequenas esferas de fogo estouraram no Kaijin. Enxames de odiosidades indescritíveis picaram e morderam o tamuriano. Mal era possível saber o tempo que havia passado enquanto Sanzhang entoava cânticos sob os auspícios dos espíritos puros que lhe cercavam o observando tentar salvar a demônia, mas não havia pureza que pudesse cuidar de algo feito de energias funestas. Umayado relinchava preocupado com seu dono ao lado de Baku, a coisa esquisita de olhos e dentes flutuantes que servia acompanhando fielmente Naoto.

Enfim um clarão se expandiu e o dojo veio abaixo. Até que um dos samurais se aproximava cambaleante carregando a cabeça do oponente derrotado. Saindo dos escombros a arremessou próximo do símio.

- Está feito… Não se preocupe, Naoto está ferida, porém salva! – o Vanara parecia não se importar com a cabeça ensanguentada perto de si – Ela não tem a mesma anatomia que a nossa e nenhum ponto vital estava onde devia. Logo vai se recuperar… Mas vamos embora daqui! Não há mais o que possamos purificar.

O samurai sangrava por várias feridas, tendo o kimono rasgado e imundo de um sangue similar a vômito. O Cão Vermelho Zhao Akai saíra vitorioso, mas não intacto, tendo finalmente superado seu maior mentor, o próprio pai.

- Agora entendo quando me disse que ele estava longe de poder ser purificado – Zhao ergueu o corpo da jovem demônio e prendeu à sela de Umayado sob muita resistência que o equino tinha de carregar aquele ser – Acalme, Umayado! Um cavalo de guerra deve ser tão destemido quanto seu cavaleiro ou manchará a reputação de seu cavaleiro!

Os protestos da montaria cessaram ainda que a contragosto. O samurai bebeu o último gole de seu cantil olhando para o vulcão logo atrás. Sua missão fora cumprida ao derrotar aquele que sujara o nome de sua aldeia, mesmo sem ter encontrado os artefatos e escritos antigos que pretendia levar para o distante reino ao qual servia.

- Meu ment… Aquela coisa ainda renascerá corrupta certo? – arranhou a garganta enquanto cavalgava calmo pelas ruelas seguido pelo monge que sempre se recusava a viajar a não ser que fosse pelos próprios pés. O símio concordou com a cabeça em silêncio – Bom, que essa menina Naoto tenha a graça de Lin Wu para quando ele voltar dos cinco infernos aonde o joguei.

O velho monge sorriu gentil. O cansaço tomava conta de seu corpo e só poderia imaginar quando mergulharia nas termas da casa de banho.

- Ora ora, mas veja!

O símio todo sorridente se agachou próximo a um canteiro espanando a terra arenosa com as mãos. Ali florescera um belo carmim, grande e vibrante.


Puro e vermelho como a honra dos Cães de Beni’hi.




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Editado pela última vez por Antonywillians em 30 Jan 2021, 02:36, em um total de 4 vezes.


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Re: [Conto Tamu-ra] Santuário dos Cães Vermelhos - completo

Mensagem por Antonywillians » 05 Mar 2020, 21:04

Terminei de publicar todo o conto com as partes que faltavam.

Espero que tenham gostado e possam comentar abaixo suas críticas e sugestões.


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