Veneno (conto)

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johannfowl
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Veneno (conto)

Mensagem por johannfowl » 02 Mai 2020, 16:44

Este não é um conto relacionado a Tormenta.
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Veneno

A Passagem da Serpente era ainda menos convidativa do que o nome sugeria. Mas Suna sabia que a longa fenda, situada entre dois grandes rochedos nas montanhas de Yabal, era o caminho mais curto para encontrar água.

— Imprudente — disse a mulher a si mesma pela milésima vez, após tomar um pequeno gole e esconder o cantil, quase vazio, sob o manto. — Imprudente, imprudente!

Olhou para trás, secretamente esperando por um sinal de água, mas não parecia haver nada vivo em meio àquela paisagem árida e rochosa. Não se via animal nem homem na imensidão ensolarada e nem qualquer tipo de construção, e não fossem os arbustos distantes, um estrangeiro poderia pensar que aquela terra era completamente morta. Mas Suna, como todos os habitantes de Yabal, sabia muito bem que o deserto era cheio de vida, escondida nas fendas, pedras e até mesmo sob a terra. A Passagem não era exceção — e isso fazia Suna tremer de medo.

Ela deu uns poucos passos à frente e, antes do que esperava, viu algo deslizando com elegância pelas paredes da passagem: uma bela serpente yaniv, ostentando suas características cruzes marrons sobre as escamas cor de areia. Era pequena, um pouco mais longa que o antebraço da mulher, e, apesar de não ser muito agressiva, a espécie não gostava de ser incomodada. Felizmente, aquela não estava interessada em Suna, e desapareceu atrás de uma rocha no instante seguinte. Ela sabia, no entanto, que a passagem não tinha aquele nome à toa, e que logo estaria em uma situação complicada.

— Imprudente — se censurou mais uma vez, e entrou de vez na passagem.

Não tardou para que mais serpentes aparecessem, fosse deslizando por entre as pedras aqui e ali ou quietas em frestas e saliências nas paredes da passagem, tomando sol e esperando tranquilas pelo crepúsculo — sua hora preferida para caçar. Mas, apesar de quietas, as yaniv não negavam comida fácil: Suna viu uma cobra atacar um ratinho distraído, e outra, mais adiante, quase capturou um pássaro. Tenha cuidado, disse ela a si mesma. Uma única picada e teremos um grande problema.

Apesar do receio de que as yaniv a atacassem, a mulher não as odiava. Na verdade, tinha interesse nas serpentes e até mesmo nutria uma certa admiração, pois, mesmo vivendo em locais hostis e desolados, elas eram sempre sutis e elegantes, com uma beleza peculiar. Suna também tinha uma certa empatia pelos animais, pois a lembravam de si mesma: eram evitadas pela maioria das pessoas e muitas vezes causavam dor — mesmo sem intenção.

Em pouco tempo, o lado direito da passagem deixou de receber a luz do sol, e algumas das cobras começaram a ir para a parede à esquerda querendo se aquecer. Suna desviou o quanto pôde das serpentes, mas o número começava a ficar grande demais.

— Ah! — o grito da mulher encheu a passagem.

Uma das yaniv havia acabado de passar por cima de sua sandália. Felizmente, ela não havia atacado, mas o efeito em Suna foi quase igualmente devastador. Paralisada, com os lábios tremendo e seus olhos arregalados, ela não pôde evitar pensar em sua família. A mãe que nunca conhecera, o pai, a irmã e o próprio filho… todos envenenados. Todos mortos, pensou, enquanto uma lágrima escorria.

E a culpa é toda minha.

Ela respirou fundo e se recompôs. Não havia picada. Ela podia seguir em frente. Um passo de cada vez, retomou sua marcha.

Ainda mais serpentes faziam a travessia, mas Suna agora estava determinada a sair dali rapidamente. Ela apertou o passo com atenção redobrada no movimento dos animais, encontrando pontos seguros onde podia pisar. Aqui, ela podia pisar com tranquilidade e pegar impulso; ali, deveria ficar na ponta dos dedos, apenas para se equilibrar. Em um momento podia correr, em outro precisava pular. Mas, quanto mais ela prosseguia, mais fácil ficava andar; era quase como se estivesse em harmonia com as serpentes, como se fosse uma delas.

Ela não parou até que saísse da Passagem. Dando tudo de si, ela finalmente chegou ao outro lado, onde uns poucos arbustos — Água! — se espalhavam pelo chão. Não muito adiante, algumas nuvens finas de fumaça se erguiam até o céu — Uma aldeia!

E nesse momento de alívio, Suna se distraiu.

Tudo aconteceu muito rápido: antes mesmo que ela percebesse que havia algo sob sua sandália, uma dor aguda surgiu em seu calcanhar. Com um grito, ela pulou para longe e olhou para trás, em choque, em busca da serpente que a havia picado, e, a dois passos de distância, encontrou uma grande e bela yaniv em posição de ataque.

— Foi só uma picada — sussurrou Suna, em pânico, sentindo a dor intensa no calcanhar — Foi rápido. Não é o suficiente, não vai acontecer nada…

A serpente moveu a cabeça de um lado para o outro, os olhos fixos em Suna, como se fosse atacar novamente.

— De novo não! — suplicou a mulher.

Por um momento, a cobra pareceu entender a mulher, e parou de se mover.

No instante seguinte, a serpente se debatia pelo chão árido. Espasmos violentos a jogavam de um lado a outro, enrolando e desenrolando seu longo corpo repetidamente, lançando-a contra rochas que furavam suas escamas e faziam sangue espirrar por toda parte.

— Não… — dizia Suna a si mesma, enquanto os olhos marejados observavam o sofrimento da cobra. — Outra vez não…

A cobra então se contraiu uma última vez, e enfim parou de se mover. Trêmula, Suna observou o corpo inerte do animal, esperando por algum movimento, som ou qualquer pequeno sinal de vida, mas nada aconteceu. A yaniv estava morta.
As pernas de Suna bambearam e mulher caiu de joelhos, aos soluços. Seu calcanhar doía, mas a dor em seu coração era ainda maior.

— É só uma cobra — disse a si mesma com a voz embargada — É só um animal! Por que tem que doer tanto?

Embora admirasse as serpentes, não era a simpatia pelo animal que a deixava tão triste; Yabal era uma terra cruel, e a morte era comum. Mas quando algo morria daquela forma, ela se lembrava de todos os outros: sua mãe, durante seu próprio parto; sua irmã mais velha, ao carinhosamente beijar uma ferida; seu pai, quando Suna deixara cair uma gota de sangue na comida que preparava; seu filho, enquanto mamava em seu peito; e tantos outros, em pequenos acidentes… Todos haviam sido vítimas de seu sangue amaldiçoado, daquele veneno hediondo que corria em suas veias. A mulher desejou que as yaniv fossem venenosas. Assim, pelo menos, aquele sofrimento poderia acabar rápido.

Sim, às vezes, morrer parecia uma saída…

— Não — a palavra saiu involuntariamente, mas não podia ter sido mais sincera.

Eu já suportei tanto, disse a si mesma. Não é hora de desistir.

Suna se levantou, tirando a poeira das roupas. Cambaleou nos primeiros passos, mas logo suas pernas se firmaram e ela seguiu em direção à fumaça, deixando as serpentes para trás. Afinal, ainda precisava de água.
Que lugar é esse? Como eu vim parar aqui? Como põe fotinha bonitinha? ONDE É QUE EU TÔ?

johannfowl
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Re: Veneno (conto)

Mensagem por johannfowl » 02 Mai 2020, 16:44

Se eu fosse fazer um conto único, eu terminaria na parte em que se revela que o sangue da moça é venenoso. Mas, como eu tenho algumas ideias para essa personagem, coloquei algo mais esperançoso no final.
Que lugar é esse? Como eu vim parar aqui? Como põe fotinha bonitinha? ONDE É QUE EU TÔ?

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