[ROMANCE] SAÚDE RUBRA: um épico sobre a Praga Coral

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Antonywillians
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[ROMANCE] SAÚDE RUBRA: um épico sobre a Praga Coral

Mensagem por Antonywillians » 28 Jan 2021, 16:50


SAÚDE RUBRA

AUTOR: ANTONYWILLIANS

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SINOPSE


Lomatubar é um reino amaldiçoado. Desde sua origem, os colonizadores do território enfrentaram constantes batalhas contra a ameaça de grandes exércitos de orcs que vinham das cordilheiras geladas das Montanhas Uivantes, tendo suas terras incendiadas e povoados saqueados. Quando encontraram a solução para esse mal, pouco podiam esperar que se voltaria contra eles na forma de uma praga mágica que dizimaria a população, devastaria a esperança dos lomatubarianos e ainda reduziria suas carnes a uma crosta de coral arcano.

A Praga Coral. Esta doença mágica trazida de uma outra dimensão, feita de pestes e doenças, tem ameaçado o Reino de Lomatubar, minando as rotas de comércio e arruinando a economia local. Há um êxodo constante de pessoas que estão desesperadas após verem familiares, amigos e vizinhos morrerem por tal vil enfermo, os poucos teimosos que se recusam abandonar seu lar sofrem com a paranóia da contaminação, assunto ainda incógnito, com os monstros que são criados nas matas e trilhas, com os boatos de sobreviventes da doença que se tornaram feiticeiros caçados por todo reino e além de tudo, a ameaça iminente de um avanço dos orcs do norte gelado, agora imunes à Praga.

Heróis vêm de todos os cantos de Arton atrás das grandes quantias e recompensas oferecidas pelo Rei Sedmoor para então encontrarem apenas seu fim em agonia quando contaminados pela maldição. É chegada a hora de um grupo de aventureiros descobrirem um meio de acabar de vez com essa chaga, antes que seja tarde demais.

Boa leitura,
Aventureiros!

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Mapa de Lomatubar


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ASS: ANTONYWILLIANS, O MAIOR ESPADACHIM DE ARTON


TÓPICO CENTRAL DOS CONTOS DE ANTONYWILLIANS

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Antonywillians
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Re: [ROMANCE] SAÚDE RUBRA: um épico sobre a Praga Coral

Mensagem por Antonywillians » 28 Jan 2021, 17:09

PRÓLOGO
O FIM DA GUERRA


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Fim da manhã de primavera no dia 4 de Pace de 1312, do calendário artoniano. Um relâmpago iluminou cada gota pesada da tempestade, cuja queda era assistida de dentro da câmara de pedra fria e escura. Os onze se reuniam envolta de uma longa mesa retangular observando o céu cinzento que soprava ventos fortes, vez ou outra para dentro das janelas de vitrais abertos, apagando os lampiões em sua investida brusca, molhando os ombros dos membros na reunião. Era como se esperassem que a tempestade lhes trouxesse o que tanto ansiavam.

O silêncio imperava dentro do aposento, mas ainda assim suas mentes ressoavam os sons da guerra ao norte do reino. Há algumas semanas de viagem dali para o norte, homens caíam aos sons de metal se chocando, brados de guerra, gritos de desespero e urros de dor. Os passos metálicos que estalavam e rangiam como se o exercito fosse um gigante de ferro em movimento estavam misturados ao som das costelas rachadas dos caídos e pisoteados. A lembrança do odor de sangue dos campos ainda parecia adentrar a narina de cada um dos dez conselheiros generais, perturbando-os mais que a espera angustiante destes. O rei era o mais pensativo, de olhar perdido e maduro, como se orasse mergulhado na escuridão que se formava em sua feição, pela pouca luz da câmara de reuniões. Almejavam finalmente terem encontrado a solução para os problemas do reino.

Desde sua fundação pelos colonos, há mais de duzentos anos, aquele reino vinha sofrendo de uma guerra horrível que abalava cada esfera da sociedade. No extremo norte, aos pés das Montanhas Uivantes, se estendia o relevo alvo da cordilheira Gull-Kor, onde orcs habitavam no breu da complexa rede de túneis escavados sob a região, nunca tendo aceitado a investida dos conquistadores sobre seu território, e assim começando a defendê-lo como podiam: através da violência.

O reino recém-colonizado teve sua primeira expedição militar com puros fins bélicos durante o governo do regente estrategista Lomatubar Sedmoor, que pela glória de suas vitórias pôde batizar o reino com seu próprio nome. Apesar de nas primeiras batalhas os colonos terem conseguido constantes sucessos empurrando a massa de orcs até se concentrarem totalmente nas montanhas, logo foram revidados e passaram a perder assim que os monstros perceberam como podiam se aproveitar da vantagem territorial. Afinal, o reino lhes era bem conhecido há muitas gerações

No inicio os orcs foram escravizados e os terrenos conquistados, fornecendo grandes vantagens para o reino de Lomatubar, e alimentando ainda mais os motivos para a manutenção da guerra, contudo, quando as perdas se tornaram altas, as ruas foram tomadas pela criminalidade, as rotas assoladas por bandoleiros, a produção agrícola caiu para que os camponeses fossem reforçar as fileiras militares, os guerreiros começaram a entrar em greve pela falta de soldo e alimentação que os regentes não conseguiam mais saciar, golpes militares ocorreram tanto quanto os casos de traição, as pessoas começaram a abandonar a nação, os impostos aumentaram absurdamente para suportar as despesas e os orcs estavam sem recuar há tempos.

A família dos Sedmoor, descendente do fundador do reino e, portanto, produtora de regentes vitalícios, nunca desistira. Após muito esforço e pressão dos comerciantes, em 1295, o Imperador-Rei Philydio, O Tranqüilo, reuniu vários reinos para ajudar no combate do problema. Desde tal data os reforços ainda chegam e os orcs permanecem imbatíveis em seu terreno nativo, resistindo mesmo assim. Era o tempo das Guerras de Lomatubar, como ficaria marcado na história do reino.

Após tanto tempo, as preocupações continuavam e as reuniões de guerra com o rei eram mais comuns, em prol de alcançar uma idéia que levasse à uma vitória definitiva na guerra. Não era raro ver os dez generais membros do conselho entrando no palácio, cada um descendente de um dos dez parentes de Barud Sedmoor, que liderou a caravana até o reino e fundou uma vila com seu primeiro nome, futura capital de Lomatubar. Hoje já não tinha mais idéia de quantas reuniões haviam sido feitas na história do reino, e nem importava perder tempo com isto. A guerra devia acabar, e se Keenn estivesse satisfeito com a matança, enviaria a luz da vitória. Não se tem certeza se realmente foi ele, mas a luz veio.

...

As penas riscavam a mesa feita da famosa madeira Tollon, importada do reino de mesmo nome, durante uma das raras épocas de riqueza, os olhos cheios de olheiras inchadas por noites de sono em claro pesavam ansiosos, uns examinavam a armadura que vestiam procurando detalhes, daqueles que só percebemos quando não temos nada para fazer além de procurá-los. Mas ninguém ousava falar, parecia uma blasfêmia com o outro, ou mesmo com os deuses. Alguns mesmo se perguntavam se por acaso era possível que uma parte do mundo fosse esquecida por algum deus do Panteão, se fosse, era Marah, a Deusa da Paz, que não era capaz de encontrá-los.

O rei bufou.

Os generais do conselho instantaneamente olharam-no quase que o devorando tamanha tensão. Ele teria pensado em algo? Seria a resposta dos problemas? Será que finalmente era a vitória? Não, o rei apenas bufou impaciente, e eles fecharam-se dentro de si novamente sequer hesitando em desviar os olhares apreensivos. Um deles até mesmo fechou os olhos, queria se isolar do mundo e dentro de si correr dos fantasmas que lhe assombravam naquela guerra. Via os corpos, os orcs imundos rugindo, familiares mortos, crianças estupradas… abriu os olhos. “Qual mundo seria pior?”, indagava-se em pensamento, “O que vivo ou o que crio?”. Não havia respostas… apenas guerra, caos e tensão.

Sedmoor não fizera por mal, bufara como um maquinário mágico que solta vapor quando aquecido por muita magia. A pressão em seus ombros era enorme, assim como fora com seus antepassados. O monarca se chamava Karl-lekhii Sedmoor, seu primeiro nome derivava das linguagens bárbaras regionais anexadas durante a expansão de relações e territoriais realizada por Barud, e significava “Sorriso Vitorioso”, o regente sempre quis expressar seu nome desde que assumira o trono real, mas não fora capaz sequer se esboçar um sorriso de perdedor.

Observava atentamente cada detalhe já tão bem conhecido na câmara, evitando olhar e partilhar da preocupação dos conselheiros. As tapeçarias que cobriam as paredes de mármore enegrecida estavam mofadas e roídas por traças, mas ainda assim eram capazes de revelar um esplendor artístico que tentava simular o reino lá fora, com o horizonte de pinheiros reluzindo ao pôr-do-sol e representando até mesmo a antiga capital, na época em que não passava de uma vila ribeira de famílias colonas. Contudo, Karl encontrava-se com as pinturas dos reis Lomatubarienses. Lá estava o colono Barud, com sua pose de liderança, trajes de aventureiro sobre o corpo farto, barba negra e espessa que lhe revelava uma herança anã, de cabeça calva aonde usava uma boina vermelha que até hoje está exposta no Museu Nacional de Lomatubar, próximo aos estábulos reais. Seu olhar brilhava em busca de novas conquistas e aventuras, seu sorriso era afortunado, querendo contagiar os demais descendentes Sedmoor que lhe reservasse o olhar, mas nenhum deles foi capaz de encará-los. Os pêlos negros no corpo eram traços há muito abandonados, assim como a felicidade.

A miscigenação com os povos bárbaros e os esquimós das Uivantes começaram a clarear as feições dos nativos. A cada quadro que se passava, dispostos em ordem cronológica da posse dos regentes, era berrante notar como os sorrisos eram cada vez mais sutis e os cabelos passavam do negro ao castanho, do castanho para o ruivo, do ruivo ao louro ou alguns grisalhos desde a mocidade. Ao mesmo nível progressivo, era perceptível a presença das olheiras cada vez mais inchadas e roxas, a expressão mais séria e madura, até alcançar a preocupada e paranóica. Karl-lekhii seria o próximo a deixar seu quadro ali, imaginava quão “evoluído” estaria naquela escala degradante. Sentia os olhos de cada antepassado sobre ele, mirando-o e cobrando… alguns pareciam passivos, partilhando de seus males. Cada Sedmoor ali sentia a vontade de chorar, mas uns eram feitos de tinta, e o único que não era, tornara-se o atual monarca, sem contar que nenhum Sedmoor jamais se rende… nem às lágrimas. Mesmo seu pai, Hrarumah Sedmoor enlouquecendo e acreditando que sua família havia sido amaldiçoada com a desgraça por alguma bruxa no passado, não se entregou. Cometeu suicídio sim, todavia, não para fugir daquela realidade, e sim por acreditar que se matando em um ritual próprio seria capaz de retirar a maldição de sua herança sanguínea e salvar tanto Lomatubar quanto o governo do filho. Uma história emocionante quando narrada por bardos reais, contudo, de nada adiantou o ato.

Um choro de um bebê ecoou por dentro da câmara acordando os membros da reunião de seu transe e dissipando a mortalha que cobria suas mentes.

Sedmoor realmente nunca fora capaz de sorrir, ao menos por si só. O pequeno Balther Sedmoor, príncipe herdeiro de Lomatubar, era o único que naquele mundo conseguia arrancar um sorriso das entranhas daquele homem que não sabia mais expressar um verdadeiro sorriso como o de Barud, o antepassado que sabia ser feliz vendo as coisas mais belas nas mais terríveis como todo bom aventureiro. Balther, seu filho, era um recém-nascido que parecia ter sido enviado pela própria deusa da vida Lena, pois o pequenino, mesmo inconsciente de seus atos, era capaz de com sua voz e presença imbuir qualquer um de esperança. Isso mesmo ao frustrado monarca, tanto que escolhera esse seu nome por significar no idioma bárbaro o conceito de “resistência. Os generais sorriram e balançaram a cabeça achando engraçado, até que Sedmoor se arriscou a quebrar o tabu do silêncio.

- É, parece que o meu príncipe também está impaciente! – sua voz era rouca de cansaço e preocupação, por vezes trêmula e fraca. Alguns ainda cogitavam que sua voz pudesse estar maculada pelo tempo, meses que passava sem falar além de sussurros monossilábicos, em ordens objetivas ou resmungos, apenas ouvindo as palavras dos demais e se manifestando quase que em somente gestos com a cabeça ou a mão.

Os generais se entreolharam e voltaram um sorriso para o rei, não refletiam uma alegria contagiante… eram sorrisos maculados pela apreensão constante e que hesitavam a aparecer aos outros como se os lábios percebessem que lhes fora proibido de revelar os dentes em gesto tão sacro e admirado pelos deuses.

...

Após o breve momento em que o choro cessara, a enorme porta de madeira de pinheiro se abriu rangendo com os arautos tocando as trombetas reais no corredor longo. A luz e o som entraram na câmara como se fosse um vagalhão inesperado que arranca as pedras de um rochedo abruptamente. O coração do rei e dos generais parecera pular do peito tamanho susto, contudo, o som e a luz deram vida ao recinto, assim como o choro lhes dera esperança. Então o arauto anunciou em bom som.

- Vossa santidade, paladino de Khalmyr, Hollin Duffking!

No exato momento um trovão retumbou vibrando céu e terra. A luz de um raio entrou pelas passagens da janela e reluziram na armadura do homem que entrava ereto, disciplinado e rígido no aposento. Era um Lomatubariense, sem duvidas, um dos mais justos. Trazia os cabelos rentes ao couro, com o brilho rubro digno de sua herança, sua pele se aproximava da albina e seus olhos eram de um azul safira impressionante. Um bigode ligado à barba ruiva rala lhe dava uma impressão de maturidade incomparável. Sua armadura era feita de um aço resistente, folheada à prata e trazia no peito o símbolo da espada-balança que pertencia ao deus ao qual se entregara em espírito e devoção, Khalmyr, o Deus da Justiça. A Ordem de Khalmyr nas cordilheiras Lamnestull e a Ordem dos Cavaleiros da Luz de Bielefield eram as organizações sagradas mais famosas formadas pelos guerreiros santos do Deus da Ordem, entretanto, não era a única. Hollin fora educado no templo da justiça em Barud, e após vários feitos, que provaram sua competência, foi promovido à lorde e liderou tropas contra as de Gull-Kor, conseguindo inúmeras vezes ter mais sobreviventes do que derrotados, mesmo que poucas batalhas vencidas. Agora ele não era um simples paladino ou capitão de tropa, mas sim a salvação. Sedmoor amaldiçoou os ritos cerimoniais.

Hollin se aproximou e ajoelhou-se perante o rei, prestando os gestos regidos pela etiqueta. Sedmoor lhe entregou a mão direita aonde descansava um anel de ouro no indicador com uma pedra feia e escura, sem valor monetário algum. Na verdade a pequena pedra era símbolo da colonização, pois Barud Sedmoor assim que pisou na margem leste do rio Daganir, localizado no extremo oeste do reino, tocando pela primeira vez o solo de Lomatubar com sua bota de aventureiro aonde ergueria a futura capital, ordenou que a primeira rocha que encontrasse fosse deslocada e considerada marco da colonização, e um pedaço dela teria que fazer parte do anel real que ficaria no dedo da dinastia Sedmoor representando seu reinado sobre aquele solo, dizendo ainda as palavras “Não será qualquer pedra ou metal que demonstrará nosso poder sobre o reino, mas uma que seja retirada deste chão, pois este não pertence ao rei, e sim o rei que pertence a ele! Os futuros Sedmoor deverão ser lembrados todas as manhãs disto quando erguerem a mão do poder em suas decisões!”. Hollin beijou a pedra solenemente e permaneceu de cabeça baixa.

- Erga-se, jovem, e me abençoe! – disse a voz rouca de Karl enquanto o paladino pegava suas mãos reais e beijava uma de cada vez.

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- Khalmyr o cubra com seu escudo prateado contra os inimigos e os destroce com sua espada sagrada, vossa majestade! – a voz do paladino era galante, capaz de levar as donzelas à loucura e jovens homens à guerra.
Após a cerimônia solene, com o paladino sentado próximo do rei, os arautos colocaram as trombetas nos lábios e anunciaram o próximo.

- Mago autônomo e pesquisador, Thursten Covariel!

Os generais esticaram o pescoço mais a frente como se fossem tartarugas com a cabeça saindo dos cascos. Seus olhos vidraram na porta, o próprio rei não se continha dentro de seus mantos e roupas inacabáveis já bem molhadas pelas rajadas de vento com água da chuva que entravam pela janela. Foi então que surgiu a figura. Os conselheiros na mesma hora se jogaram com peso nas próprias cadeiras resmungando baixo já sem qualquer esperança, o homem estava acabado demais para ser um salvador… ouviram falar que foi um estudioso da Grande Academia Arcana que pesquisava incessantemente assuntos extra-planares, porém o que viam parecia não ser mais que um reles humano no fim da vida que mal seria capaz de lançar uma magia para limpar as próprias mãos. Sedmoor percebeu a indignação e desesperança de seus generais-conselheiros, mas sua tradição ensinou a jamais desistir, subestimar os outros ou perder as esperanças. Se Hollin, o homem em quem mais confiava no mundo, mais do que em sua mulher, trouxe aquele mago era por que o velho ali tinha cartas na manga.

...

O som da bengala, feita de um cristal azul jamais visto por qualquer um naquele aposento ecoava por cada bloco de mármore que compunha as paredes do recinto. Era oco e cheio de mistério, penetrando nos ouvidos e almas dos presentes. Sobre o objeto apoiava-se a mão débil e enrugada de um homem bastante idoso, e curvado pela idade. O velho que ali entrava trajava uma túnica púrpura de linho que lhe caía até o joelho e era apanhada na cintura por um cinturão de bronze com gemas coloridas incrustadas, os pés calçavam sandálias de borracha, bastante sujas de lama que chapinhavam no chão criando um rastro no carpete real. Suas mãos esqueléticas estavam cobertas por luvas verdes feitas de couro macio e seu rosto era simples, sem traços muito marcantes, apenas bastante magro como se a pele envolvesse o crânio sem passar por qualquer carne. Na cabeça de poucos cabelos grisalhos descansava uma boina metade branca e vermelha, contudo, Sedmoor se deteve no único lugar que realmente importava em uma pessoa… os olhos. Verdes como duas pedras de esmeralda reluzente, fixos em algo muito além da vida, sinceros e espelhando determinação. O rei sentia um bom sinal.

O mago pareceu não dar importância aos generais decepcionados ou aos serviçais que entraram ágeis e sutis reacendendo os lampiões e trancando as janelas para evitar que o rei e os conselheiros terminassem resfriados. Covariel aguardou até que os servos deixassem a câmara e as portas fossem fechadas para cerrar o punho no peito e realizar uma breve reverência ao rei que lhe estendeu a mão para o beijo do anel real. Sedmoor estava intrigado com aquele homem, primeiro que não parecia trazer os traços esquimós comuns da miscigenação genética no reino; e segundo que quando se curvava na cerimônia do beija-mão estalava e rangia todos os ossos frágeis… como poderia tal pessoa, que aparentava ter menos de 90 invernos, ser capaz de realizar um feito tão magnífico como o de ter a fórmula para a vitória do reino que passou tantos anos sem sucesso.

- É uma honra, majestade! – a voz do velho fez cada conselheiro arregalar os olhos e o próprio monarca perder as palavras.

Ainda que o físico do homem o fizesse lembrar um pouco mais que um morto-vivo, sua voz era inabalável em um sussurro que poderia ser escutado com perfeição mesmo em um tumulto, carregada de sabedoria, conhecimento, respeito e confiança. O rei corou as bochechas pálidas, pois nem mesmo ele, como representante de Lomatubar, líder da nação, tinha uma voz tão firme quanto daquele homem que aparentava mais decadência física do que ele mesmo. O mago rejeitou com rabugice a ajuda de um conselheiro que lhe ofereceu para que sentar-se à mesa.

- Que esta reunião inicie, sob a benção dos deuses e os olhos atentos dos meus antepassados! – Sedmoor disse como regia o protocolo – Peço que, vossa santidade, lorde Hollin pronuncie-se!

O rei Karl descansou os cotovelos na mesa e entrelaçando os dedos na frente do rosto prestou bastante atenção em cada detalhe da reunião. O paladino não havia movido qualquer traço de sua feição pétrea e impenetrável, seus olhos exalavam apenas justiça e mais nada. Seus lábios moveram-se sem muito exagero, com entonação digna de um guerreiro disciplinado e líder de tropas.

- Como solicitado, vossa majestade, deixei minhas tropas na reserva das expedições e montei um grupo de batedores com meus mais sorrateiros homens para procurar uma brecha que nos conceda a vitória! Eu encontrei este homem na missão, é um valoroso mago que cursou a Grande Academia Arcana há algum tempo e se dedicou aos estudos extra-planares! – a mão indicou o mago velho que fungava – Então tomei a liberdade de organizar uma reunião para que o senhor Thursten Covariel tenha a chance de lhe demonstrar o resultado de suas pesquisas que tanto me impressionara!
Sedmoor interessou-se, então ergueu a mão para que o mago apresentasse o resultado de suas pesquisas. Covariel pegou um óculos sem hastes, preso por uma corrente de pedras preciosas e o pôs com suas mãos trêmulas sobre o nariz adunco, ajeitando-o com o indicador, em seguida estendeu o braço para o meio da mesa e abriu a palma da mão, sussurrando quase inaudível:

- Kred tür varen!

Os dedos e a palma brilharam em uma espécie de aura fluídica azulada que intensificou o brilho até que de repente disparou em direção ao teto com um zunido, que fez os generais alarmarem-se e segurarem o cabo de suas armas em reflexo. O rei permanecia estóico examinando cada detalhe dos atos do velho mago. A luz espalhou em cruz no teto, então retrocedeu e desceu em direção à mesa de carvalho, parecia um pequeno meteorito, era como se com tamanha velocidade fosse atravessá-la como uma flecha, mas então parou momentos antes, no ar… e do globo de luz azul surgiu uma esfera de cristal com um fragmento em seu interior. Os generais apenas observavam espantados aquele objeto que flutuava diante deles. O rei coçou o cavanhaque ralo percebendo que aquela reunião não seria tão improdutiva quanto as últimas.

Covariel tossiu e começou com sua voz carregada de segurança e estudos.

- Senhores, o que podem ver neste pequeno compartimento mágico que acabo de invocar não é apenas uma arma ou uma opção… – tossiu tampando a boca com as costas da mão e continuou – mas sim a chance de vitória para este reino!

As palavras do velho eram contagiantes e misteriosas. Intrigados, cada um naquela mesa esticou o pescoço para ver com mais clareza o pequeno objeto, ele reluzia em uma tonalidade negra e rubra… como um pedaço de coral.

- Durante anos de pesquisa, senhores, tentei me especializar no estudo das doenças mágicas e mundos fora de nosso plano! Como sabem, há uma sorte incrível de mundos além dos nossos, como os dos próprios deuses! – fungou e continuou – Quando me estabeleci em Lomatubar soube sobre o empecilho causado pela guerra e me interessei em procurar algo que fosse capaz de ajudá-los! E encontrei!

Sedmoor permanecia ouvindo e observando o fragmento de coral no globo mágico.

- Existe um mundo há muito esquecido! Nele vivem organismos mágicos de tamanho tão pequeno que nos é imperceptível aos olhos, até que se unam formando a lasca na frente de vocês! O plano de origem deles é feito de pestilências, doenças e magia… – limpou a garganta com som rouco e continuou – Então me interessei, pois sempre busquei conhecer doenças, estudá-las e procurar uma forma de curá-las, principalmente por magias arcanas! Foi quando testei com prisioneiros que fiz com aqueles intrusos malditos que ousavam tentar pilhar minha torre. Eram das mais variadas raças, e um deles era um orc!

Os conselheiros pareciam mais interessados agora e Hollin sentiu orgulho de sua competência na sua missão.

- Nenhuma raça foi contaminada, a não ser os orcs, para os quais a doença revelou-se letal! Não sei o porquê, senhores, mas era! Testei em mais de cinco e fui bem sucedido! Portanto, trago-lhes o conhecimento de utilizar o que chamo de Praga Coral para que tragam a vitória e paz a este reino!

Após as palavras todos na mesa de reuniões estavam calados, pasmos, intrigados e pensativos. Por breve momento ninguém se pronunciou… primeiro digeriam a idéia, até que um conselheiro dirigiu-lhe a palavra.

- Tem como provar a letalidade deste poder para os orcs?

Covariel sorriu banguela para Hollin que entendeu. O paladino ergueu-se da mesa e bateu duas vezes na porta do salão como um código, então lentamente ela foi aberta por serviçais que correram para o corredor. Enquanto isso, o mago continuou:

- Em média os orcs sofrem os primeiros sintomas no sexto dia após serem contaminados, depois eles estão mortos por volta de 11 semanas! Contudo em menos de um mês já estarão tão enfraquecidos que um avanço das nossas tropas será muito mais vitorioso!

Uma jaula enorme surgiu do corredor, puxada por três serviçais do palácio, ajudados pelas rodinhas sem óleo na base que faziam um barulho angustiante e agudo.

- Agora gostaria que olhassem atentos para esses dois orcs! Um está na quarta semana e o outro já perecera!

Neste momento tentaram encontrar forma nos vultos atrás das barras de ferro. Puderam então ver a besta horripilante de traços verdes e suínos sentado em um canto, mas a escuridão da câmara estava obscurecendo a visão de cada um. Com um gesto impaciente do rei, um servo respondeu trazendo uma tocha para perto da jaula. Os membros da reunião quase vomitaram com a cena.

Um orc estava sentado em um canto, ofegante, inquieto e suando muito. Seu corpo estava à pele e ossos, desnutrido e coberto de feridas. O mais incrível era que como veias duras e aterrorizantes pulsavam por seu corpo algo como crostas de coral que lhe rasgavam a pele e saíam parecendo verdadeiros enfermos. Era ainda possível notar que seus membros longos de pernas normalmente fortes e braços musculosos, estavam atrofiados e inúteis. A criatura parecia querer gritar, mas estava incapacitada. Mas esta cobaia era a que estava na quarta semana, a outra falecida estava bem pior… deixara de ser um orc, até mesmo humanóide, tornando-se nada mais que um amontoado de coral duro e pontiagudo espalhado no chão metálico da jaula, com mãos e pés avermelhados podendo ser distinguidos, com relativa dificuldade.

- E esse é o fim dos inimigos de seu reino! – disse Covariel sorrindo maroto e de braços cruzados.

- Pelos… deuses… Isso é uma morte cruel demais! – disse o rei engolindo em seco.

- Sim, mas talvez não seja para tanto, comparado ao que estes orcs fazem mesmo com recém-nascidos de seu povo, vossa majestade!

Sedmoor arrepiou-se com as palavras, pois se lembrara de seu pequeno Balther, e realmente teve de concordar com o velho mago, balançando afirmativamente a cabeça.

- O que um guardião da boa ordem e justiça inabalável diria sobre tal arma? – um conselheiro de mechas douradas penteadas para trás e presas em um rabo de cavalo curto indagou.

- Não é apenas pela espada que a ordem deve vir! E como o senhor Thursten Covariel nos argumentou, a crueldade que lhes entregaremos não será menor à que eles causam! Devem sofrer para que aprendam o verdadeiro caminho! – disse Hollin sem fraquejar.

- E como faríamos para contaminar toda população orc nas Cordilheiras Gull-Kor? – foi a vez do rei perguntar enquanto mirava o monstro dentro da jaula.

- É necessário permitirmos que seja aberto um portal dimensional para que a praga mágica invada Arton e golpeie os orcs! – disse Covariel pensativo.

- Hah! Certo… e como faríamos para despejar toda a praga sobre fileiras e mais fileiras, tropas e mais tropas, quilômetros e mais quilômetros de soldados orcs? – um conselheiro de cicatriz cegando seu olho direito rugiu mais agressivo.
O mago pensou brevemente enquanto um trovão fazia a torre do palácio estremecer. Fugindo dos olhares ansiosos por uma resposta sua, observou a janela. Chovia torrencialmente. Árvores, terra, grama, casas, telhados, pessoas nas ruas, a floresta de pinheiro e até o horizonte recebiam a graça molhada dos céus. Um sorriso banguela surgiu na boca do homem velho.

- Atacar de frente seria inútil, pois muitos podem estar escondidos em pontos cegos das montanhas! – alguns conselheiros ponderaram afirmando com a cabeça como se aprovassem o pensamento – Mas nada nem ninguém é capaz de se esconder completamente da chuva durante uma guerra, meus caros! – o mago apontou a janela para que observassem a tempestade.

Os membros ficaram impressionados com a idéia.

- Acha possível? – Sedmoor perguntou apertando o manto real sobre o corpo para proteger-se do frio.

- Completamente! Preciso apenas de três magos e uma chuva!

- A tempestade já tem! – disse a única mulher conselheira, que com seus cabelos prateados e curtos se destacava á mesa – Esta chuva é causada por uma corrente de ar frio que vem do Grande Oceano à sudoeste, seguindo por todo reino até passar do norte das Gull-Kor e transformar-se em nevasca na fronteira com as Montanhas Uivantes! Mas ela só deverá ficar na capital até o fim da noite de hoje!

- Um ritual para abrir um portal planar e misturar a praga à água da precipitação leva pelo menos meio-dia! – disse Covariel – Assim que arrumarem mais três magos com bom nível de poder, irei usar um pergaminho de teleporte para ir até o local onde esteja caindo a chuva e ali iremos fundir a praga!

Um general então se ergueu da cadeira com a expressão intimidadora. Sua voz firme era como um soco no estômago.
- Senhor Covariel, ainda assim gostaria que provasse que nenhum humano pode ser afetado pela doença!

O mago trocou olhar com Hollin que riu.

- Tenho duas! Uma é que há cinco anos tenho viajado ao Plano Coral e estou aqui inteiro! A segunda é…

Estalou os dedos e o globo mágico veio até seu punho, aonde se dissipou deixando o fragmento cair em sua mão.

- Só o contato com a praga pode não ser suficiente para contam… – o general voltou a duvidar, porém parou ante o novo ato do mago.

Covariel colocou o coral na boca, mordeu e engoliu.

- O que precisa mais para confiar em meus estudos, senhores? – o riso do velho era misterioso, maroto, respeitável e medonho.

Um raio caiu ao longe iluminando um sorriso honesto na face do rei Karl-Lekhii Sedmoor. Encontraram a vitória.

..

Naquela mesma noite bardos e agentes foram enviados pela corte em busca de magos que estivessem pela capital e mesmo em outros pontos do reino, descobrindo o nível de seus poderes e assim os contratando para logo no dia seguinte despejarem a praga sobre as nuvens. Os céus da manhã chuvosa do dia 5 do mês Pace contou com nuvens que foram avermelhadas pela magia, e despejaram as gotas pestilentas com fragmentos que desceram por todo o reino atingindo mesmo os orcs que estavam longe das cordilheiras. Três dias depois batedores reais chegavam ao palácio e aos acampamentos militares trazendo a confirmação de orcs que apresentavam os sintomas da doença mágica. No dia seguinte à confirmação ocorreu a primeira expedição vitoriosa que esmagou um exercito dos malditos monstros, mesmo estando no próprio território e em superioridade numérica, foram massacrados com facilidade assustadora. Em pouco tempo as cordilheiras foram invadidas e conquistadas pelos humanos de Lomatubar.

As rotas comerciais voltaram a funcionar com facilidade, os camponeses sentiram-se seguros, as pessoas se alojavam naquele solo, os impostos voltavam ao normal e no dia 16 do mês Pace os acampamentos foram desfeitos deixando apenas algumas torres de vigília. Neste dia foi realizado um grande festival na capital Barud comemorando a paz e prosperidade no reino. Sedmoor mandou erguerem durante a festa uma estátua com sua imagem esculpida apertando a mão de Thursten Covariel, agora considerado herói da nação. O velho mago foi visto pela última vez no dia seguinte ao ritual, quando recusou qualquer recompensa alegando que todo prêmio que desejava já havia alcançado e assim partiu sem deixar rastros ou notícias.

O rei falecera poucos anos depois deixando seu trono na mão da rainha viúva e o conselho de generais até que o pequeno Balther crescesse, tivesse amadurecimento e idade suficiente para reinar. Conta-se que a felicidade foi tamanha que o corpo do rei Sedmoor não resistiu e falecera dormindo com um sorriso eterno no rosto. Seu quadro quando foi pintado e colocado junto aos dos seus descendentes na câmara de reuniões, trazia um sorriso magnífico, que se esforçava ao máximo para parecer com o do colono Barud.

Pelas próximas oito décadas o reino não enfrentaria mais nenhum problema grave. Todos os poucos orcs que eram achados estavam contaminados pela praga, e mesmo que fosse encontrado de saúde imaculada, eram logo exterminados. Cidades começaram a ser construídas nas montanhas para extração de metais, Barud cresceu mais ainda tornando-se uma metrópole enorme no leito do rio Daganir. A prosperidade foi tanta que em poucos meses o reino se tornou um dos mais ricos e respeitados de todo o Reinado.

Entretanto, ainda que a paz durasse bastante tempo, os Sedmoor ainda traziam a maldição em seu sobrenome, e oitenta e cinco após o fim das Guerras de Lomatubar, algo bem pior que os orcs estava para surgir. Um aliado iria trair o reino… um aliado poderoso, devo salientar…

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Editado pela última vez por Antonywillians em 28 Jan 2021, 17:15, em um total de 1 vez.


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Re: [ROMANCE] SAÚDE RUBRA: um épico sobre a Praga Coral

Mensagem por Antonywillians » 28 Jan 2021, 17:15

____ARCO I____
A Dádiva Pestilenta



CAPÍTULO 01
Perseguição ao Culto dos Maculados


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Início da tarde de outono em 17 de Salizz de 1399, no calendário artoniano. Era o mês de Khalmyr, da justiça e ordem no mundo, não que fosse um período do fim das injustiças, mas sim da busca por uma era sob tais características; e poucos lugares no mundo precisavam mais que isso ocorresse do que o próprio reino de Lomatubar.

Após quase um século de paz e prosperidade, recuperando-se rapidamente da falência causada pelas guerras contra os orcs do norte, atualmente parcialmente extintos, a milagrosa chuva mágica que abençoou aquelas terras com o fim da crise, exterminando seus antagonistas, agora se voltara contra aquele povo tomando os habitantes de supetão por uma espécie de doença desconhecida que reduzia o mais resistente dos anões a restos de carne atrofiada e crostas de coral em poucas semanas. Há dois anos o enfermo começou a assolar todas as partes do reino, trazendo preocupações ao rei que viu o êxodo comercial para além de suas fronteiras, evitando as recentes e inúmeras bancarrotas que levavam gordos burgueses a mendigar nas ruas. Não eram raras, também, as notícias de feras maculadas, rumores de vilões e boatos de vilas abandonadas ou arrasadas graças à chaga. Ao mesmo tempo, rotas comerciais eram inutilizadas, aventureiros chegavam ao reino em busca de recompensa por trabalho em prol dos interesses da regência, além de servos de Khalmyr e Lena que traziam a cura e retidão aos pobres doentes. Ultimamente, chegavam até os doutores de Sallistick, especialistas de um reino distante que abandonara a cultura religiosa para entregar-se à empiria científica. Não havia indícios ou pistas do que era ou causava a chamada Praga Coral, apenas desespero, horror e paranóia conseguia preencher os corações dos nativos que choravam ajoelhados perante os túmulos vazios de entes queridos que se foram sem deixar um corpo reconhecível.

A esperança, por mais que demorasse, talvez até pudesse chegar, e ela estava aonde descansava a visão gasta e preocupada dos olhos cansados do regente contemporâneo ao ano, Kholtak, neto de Balther Sedmoor. O rei apoiava-se na beirada da janela de seu palácio, observando os mercenários e aventureiros que caminhavam indo e vindo do palácio e tavernas, preparando-se para ajudar o reino sob a oferta da prometida parcela de seu finito tesouro. Kholtak ainda estava na meia idade naquela época, todavia, já trazendo rugas severas, olheiras inchadas e uma calvície desconfortante. Após tanto tempo a maldição dos Sedmoor retornou, como que aproveitando o tempo em que por pouco não fora esquecida tamanha felicidade e fortuna que aquelas terras haviam voltado a experimentar.

Em longa toga verde e trazendo um manto prateado de pêlo de urso polar, Kholtak caminhou pelos corredores a passos vagarosos pensando no que podia fazer naquela situação por seu povo. O som metálico de seu cetro real ecoava na pedra fria que compunha o corredor desolado, aonde há poucos anos servos amontoavam-se, mas que agora estavam muito além das fronteiras de Lomatubar, seja por que fugiram, ou por que suas almas foram encomendadas aos deuses pela praga. Nos lábios fissurados da realeza, fazia-se uma prece muda.



Os dois dados de seis lados rolaram sobre a mesa de madeira gasta resultando em uma soma que definia o número de cartas a serem compradas. O outro competidor resmungou uma afirmação pelo azar, levantando-se e caminhando pela taverna vazia, indo até o balcão, pulando sobre ele, arrumando duas canecas rachadas e preenchendo da cerva gelada que saía da torneira no barril, logo voltando com destreza até seu lugar, servindo o companheiro enquanto tomava demorada golada e pegava as cartas do deck embaralhado no lado esquerdo da mesa. Houve um barulho, era o eqüino antes deitado que levantara derrubando uma cadeira. Os dois observaram o animal sair pela porta como gente, de focinho erguido como um nobre soberbo. Voltando suas atenções ao jogo, um cofiou seu bigode enquanto o outro sorriu confiante com seus dentes postiços de ouro. O malandro abriu o leque de cartas sobre a mesa, sendo todas as seis idênticas. Vencera o jogo com um sorriso amarelo.

- Hahah! Acho que perdeu, velhote! – a voz do homem era trapaceira e seus olhos espremiam-se.

- Oh, sim! Devo considerar-lhe o verídico victorioso desta partida productiva! – a voz do homem de bigode era descontraída, com um sotaque rústico e ainda assim aristocrática de alguma maneira.

O mais velho passou sua sacola de moedas para o amigo bem sucedido, deixando-a cair por acidente. O mais raposo logo abaixou para pegar a sacola com moedas dentro, contudo, três cartas caíram de sua manga fazendo o homem de armadura e bigode sorrir com seus dentes gastos em meio à sua bebida.

- Quero dizer, teria vencido se estivéssemos em um torneio de prestidigitação! Hoh-oh!

Rapidamente pegou a sacola da mão do outro e prendeu a seu cinto, antes de erguer-se para pegar uma maçã conservada em uma cesta sobre uma mesa parcialmente destruída. Os passos metálicos da bota de sua armadura completa esmagavam as canecas quebradas, ossos de comida mal acabada e restos do que horas atrás fora uma taverna simples freqüentada por camponeses e artesãos. Agora desolada, sem taverneiro, clientes ou qualquer pessoa viva além dos dois ali.

Embaralharam novamente as cartas e distribuíram entre eles reiniciando o jogo. O homem adulto, de densos e revoltosos cabelos ruivos, assim como seus fartos bigodes e cavanhaque, com olhos azuis claros, marca dos bárbaros que se misturavam nas “pastagens” de sua linhagem, trajando uma armadura de batalha branca com o símbolo de Khalmyr, a balança sobreposta à uma espada e queimada no peitoral, era conhecido como Gallath Laerthe, um jovem ginete paladino do Deus da Justiça e Ordem, vindo da distante Namalkah com seu cavalo irmão Gawayn, um alasão digno de ser admirado pelos maiores tratadores eqüestres de Arton. O outro, com orelhas pequenas e pontiagudas revelando seu nascimento bastardo da mistura de sangue humano com élfico, apresentando beleza exótica, dentes feitos de blocos de ouro modelado que ocupavam o lugar dos verdadeiros que apodreceram, mechas castanhas encaracoladas, olhar sagaz e sádico, trajes em tom marrom e finos até aonde lhe era permitido pelo ouro que possuía, magro e baixo, trazendo sempre a barba mal-feita no rosto rosado e seu mosquete preso às costas era Sir. Donovan Burgomestre, um cavaleiro caído das ordens reais de Ahlen, não que soubesse montar cavalos, na realidade tinha o costume de cair mesmo quando montava um jegue, entretanto, sua família até pouco tempo era tradicional na etiquetaria ahleniana, antes de ter sido derrubada por inimigos e vendida como escravos pelo próprio Donovan em seus tempos mais vis.

- Realmente é bastante difícil de enganar velhotes! – Donovan riu colocando sua primeira carta sobre a mesa.

- Ora, caro amigo bastardo… - os dois faziam trocas de “gentilezas” – …, caso não se recorde bem és o mais velho dentre nós! Não sei por que teima em me dar mais idade que o normal, meio-elfo amigo! Devo alegar que posso ser o mais velho dos humanos em nosso grupo por estar na casa dos trinta, mas ouctros membros de nosso grupo estão quase nos cem!

Sorriu astuto e bonachão para o outro, cofiando seu bigode, rolando um dado e comprando duas cartas.

- Ah, é que me acostumei! Você age como velho, parece velho e faz coisa de velho!

- Hoh-oh! Pois é, e você é tão jovem e nem sabe montar um jumento manco! Não apeie em terra fofa ou cairá!

Por instantes Donovan perdeu seu sorriso. Comprou uma carta.

- Concordo, não sei montar nem um jumento manco, e já trago um título de “sir.” no nome!

Foi a vez dos dentes de Gallath sumir sob os bigodes. Pôs um leque de três cartas, fazendo Donovan rolar os dados para comprar mais. Limpou a garganta com a mão polidamente em frente da boca e tomou um gole da cerveja gelada.

- Pelo menos farei por merecer, entrando para a Ordem da Cavalaria Real de Palthar! Agora deixe de me enrolar com suas tentactivas mal sucedidas de panache! Não sou mais um bacharel!

O silêncio tomou a taverna novamente quando enfim, Donovan estava para vencer mais um vez e Gallath lhe apontou as mangas.

- Em nome do Grande Cavaleiro Khalmyr, não tente enganar um mestre da justiça, amigo bastardo! Leio a injustiça e mentira mesmo no rosto de maior descaso!

- Difícil enganar um ancião paladino da ordem! – Donovan Burgomestre riu jogando suas cartas marcadas sobre a mesa, desistindo.

- Pois é, cavalos até saltam sobre riachos, porém não sobem degraus! Bom, me deve mectade do que ganhar, amigo bastardo! Usarei pelo bem da caridade em nome do Grande Ginete Khalmyr e das ferraduras de Hippion!

Ajeitando os cabelos encaracolados, o gatuno recolheu o baralho.

- Bom, vamos deixar disso, velho! A garota está demorando muito, devia já ter retornado com respostas!

- Não é com ferocidade que se toma um garanhão indomável, apenas a paciência de um vecterano e sua inteligência são capazes de tal proeza, já dizia o sábio filósofo de minha terra, Philohippo! Todavia, de facto deixemos de prosear e sigamos, pois preciso ver a integridade de minha prima! Como serva da vida, sempre se sente desconfortável diante da dor dos outros! Mal consigo imaginar como puderam fazer tal cousa com esta vila!

O guerreiro pegou o escudo brilhante encostado na parede, prendendo-o às costas, afivelando junto à sua lança de combate. O homem de olhar traiçoeiro apenas palitou os dentes depois de terminar com sua caneca.

- Realmente, velhote! Já é a segunda vila vazia, com todas as coisas intactas! Pouco vimos de batalha, mais fuga! Sem dúvidas estamos na trilha deste tal culto! Só não sei se é uma boa…

Gallath repreendeu suas últimas palavras com um olhar mais ofensivo que a ponta de sua arma.

- Não continue, companheiro bastardo! Não fazemos por ouro ou heroísmo! Cavalariços sonham com isso, os grandes vassalos realizam! São vidas em perigo, e uma injustiça está para ocorrer! Temos a missão de pará-la em nome de nossas almas!

- Heh! Aposto que o Loghan adoraria discutir isso sobre alma com você! – Donovan abriu a porta para o amigo humano passar.

- Sim, ele perdeu sua alma para o que chamam de ciência! Um suserano sem feudatários em sua razão! Porém aposto que um dia irá voltar seus olhos aos céus pedindo ao Pancteão! Viver de amulectos da forctuna é triste demais!

E assim os dois começaram a caminhar nas ruas vazias da pequena cidade claramente esvaziada às pressas, não por fuga, mas simplesmente por que todos os habitantes foram capturados e levados à força por um grupo de vilões que ameaçavam a integridade do reino. A missão desses dois e seus companheiros era recuperá-los são e salvos, punindo os malditos criminosos.



Corvos e gralhas guinchavam em uma sinfonia macabra, pousados sobre os telhados das casas abandonadas, agourando o casal que caminhava junto pelas escassas ruas entre as casas, reparando no céu tomado por uma tonalidade melodiosa revelada sobre a copa dos pinheiros que cercavam a vila de Buntacourt. Loghan deu um passo a frente jogando uma pedra contra as aves espantando-as.

- Xô! Xô! Corvos atraem o caos e se piam sete vezes é um dia de azar sem dúvidas! E gralhas cinzentas como essas perseguem a morte!

Sua companheira tentou um sorriso no semblante afetado pela melancolia.

- Ora, querido Loghan, nunca vou entender como és capaz de confiar em sinais e amuletos e não ver os deuses nisso! – a jovem riu com o desconcerto dele.

- Deuses podem existir ou não, minha cara! Epistemologia teológica não me cabe, entretanto, devo alegar que aprendemos em Fortuna a destinar nossa própria sorte interpretando os sinais sistemáticos e o pouco tempo que estudei em Sallistick, percebi mais ainda como o poder dos deuses é insignificante e custa tão caro ante a capacidade de progressão humana!

Loghan estava sério, perdido em seus pensamentos científicos e metodológicos, até perceber que sua companheira Sophie era completamente leiga e pouco entendera de suas palavras. Achou aquilo engraçado e riram juntos enquanto abraçava-a pelo ombro com o braço direito.

Loghan Boa Sorte era um aventureiro nascido no Reino Fortuna, de uma família aristocrática que alcançou a nobreza pelo comércio de amuletos da sorte e proteção, mas o jovem nascera com um dom incomum… não se satisfazia com pouco, precisava sempre conhecer mais coisa, desvendar o misterioso, ver, tocar e experimentar. A contra-gosto, foi levado aos exames de admissão da Grande Academia Arcana, cursou dois anos sempre passando nas provas como a maior nota de todas, até desistir dos poderes arcanos e viajar até Sallistick aonde a família financiou-lhe o estudo até que recebesse o diploma pelo Colégio Real do reino, tornando-se doutor especialista em medicina. Ainda assim, sua obsessão por experiências falou mais alto, até comprar uma espada e fugir de casa, unindo-se ao grupo de aventureiros que está hoje, para assim conhecer o mundo inteiro com seus pés e toques. Era um rapaz alto, bem constituído, musculoso, forte, sorridente, descontraído, com cabelos escorridos e brancos como fios de gelo, marca de uma descendência originária da mistura de colonos com nativos montanheses das Uivantes, trazendo uma espada longa embainhada no cinto e carregando sempre sua maleta negra. Trajava um sobretudo branco indo até os pés que era lavado sempre que sujava de sangue. No dedo indicador direito trazia o anel dourado com o sinete dos doutores de Sallistick, e sobre o nariz avantajado possuía os óculos meia-lua que utilizava pela vista cansada tamanho número de leitura.

A jovem que o acompanhava era nada menos que Sophie Laerthe, uma elfa nativa de Callistia membro da Ordem Samaritana das Parteiras, uma organização de servas de Lena, a Deusa da Vida, mantendo contato rotineiro com partos, o nascimento da vida de onde adquiriam seus férteis poderes. Ela trajava um vestido longo e verde feito de fibra de folhas e revestido de couro e escamas de peixe, produzido por sua mãe na época que ainda moravam em um casebre vivendo da pesca do rio Vermelho. Há anos, seu vilarejo foi atacado por homens-peixe monstruosos que já vinham tocando terror no reino inteiro, e ali pereceram seus amigos e parentes, sendo uma das poucas sobreviventes. Vagando perdida no interior do reino, encontrou Gallath que se acidentara com seu cavalo Gawayn, e após curá-los, o ginete lhe ofereceu uma aliança de sangue, tornando-se praticamente irmãos dali em diante. O pretenso cavaleiro agora era sua única família e fortaleza, e o guerreiro mago da ciência que andava a seu lado repleto de superstições era seu melhor amigo depois de Gallath. Ah sim, talvez amizade fosse muito pouco para definir o que realmente rolava entre os dois.

O toque de um no outro fazia-lhes arrepiarem enquanto caminhavam. Observavam as casas de portas arrombadas, as manchas de sangue e o ar pesado que parecia ainda ecoar surdamente os pedidos de ajuda dos aldeões capturados. Loghan se aproximava das barracas do mercado colhendo pequenas frutas ainda frescas em exposição, assim como usava sua espada para libertar cavalos ainda presos às carroças que conduziam antes do ataque.

- Espero que não sejam feridos! – disse Sophie beijando uma maçã antes de mordê-la, apreciando sua suculência.

- A sorte definirá isso, senhorita Sophie! – disse com um sorriso de descaso, recostando-se descontraído em uma das barracas – Mas sob qualquer fortuna, somos os dois maiores curandeiros que eles poderiam querer! – sedutoramente ajeitou o óculos com o indicador.

A clériga corou com seus próprios pensamentos, se aproximando do homem enquanto ajeitava uma mecha de seu belo cabelo azul, reluzente como a safira mais pura. Os passos se descuidaram com uma caixa inconveniente no meio do caminho que a fez tropeçar e cambalear, sendo segurada pelos braços fortes e firmes do companheiro.

- Cuidado, minha apreciada pescadora! – Loghan sorriu maroto acariciando os cabelos da dama.

Ela sorriu corada, levantando o rosto para ele enquanto lhe sentia o corpo com o próprio.

- Se sempre terei este corajoso protetor infiel a meu dispor, já serei bastante grata que as águas de Lady Nerelim tenham trazido você a mim!

- Mania de misturar os deuses com nossa vida! Nem essa tal deusa das águas doces, pescadores e rios é deixada em paz? Prometo um dia lhe converter ao meu agnosticismo! – ele riu retirando o óculos e aproximando sua face sorridente da macia da moça.

- Senhor Loghan… - ela tentou pronunciar algo quando um dedo quente em seus lábios a calou.

- Senhorita Sophie, a sorte nos trouxe este momento a sós novamente! Não permita interrompê-la! Que acha de entrar nesta casa e aproveitarmos como daquela vez?

- É que eu queria lhe dizer algo… Eu… Eu estou…

- Enrascada, devo salientar! – a voz astuta de Donovan atingiu os dois abraçados como uma lâmina, de forma a Sophie empalidecer em meio ao pulo para longe dos braços de Loghan que ficou desconcertado ajeitando o óculos.

- Deveras, prima! – a voz retumbante de Gallath veio de cima de seu cavalo soberbo, Gawayn, o qual montava ereto e de pulmões cheios sob uma pose sem igual – Espero que não fosse dizer “apaixonada”, ou me obrigaria a dar um coice em nosso companheiro Loghan como rege a tradição matrimonial de rito de passagem entre os Namalkahianos em que o noivo deve receber um golpe dos cascos do cavalo de um parente da noiva, sem reclamar de dor!

A clériga elfa engasgou nas palavras até que Donovan lhe entregou sua vara de pescar.

- Deixou na taverna, melhor cuidar bem de suas coisas! – e deu uma analisada desconcertante na moça antes de enfiar as mãos nos bolsos e se afastar sob os olhares dos demais.

- Vasculhamos tudo! Casas, orla, extremidades da cidade, poço… Não há sinal de que alguém tenha ficado ou escapado do tal culto! – Loghan tentou mudar o assunto, puxando ranho de nervoso.

- Sim, Gawayn também não encontrou animais silvestres próximos! Estes malditos maculam o pasto que pisam!

O eqüino pareceu confirmar bufando e batendo os cascos.

- Algum sinal da Shino? – Sophie indagou acariciando o pêlo macio e brilhante de Gawayn.

Como resposta sentiram um calafrio, até voltarem seus rostos para as sombras de um beco próximo aonde o vento assoviava. O coração da clériga de Lena pareceu congelar com os olhos de lince que dali surgiram. Em instantes a espada de Loghan estava desembainhada, Gallath seguravao cabo de sua lança sem retirá-la e Donovan preparava seu mosquete com o projétil entre os dentes de ouro. Das sombras surgiu a figura, que os fez baixarem as armas, mas não ficarem mais confortáveis. A companheira tamuriana parecia estar sempre cercada por mistério, um passado terrível e trevas exóticas. Trajando uma roupa colante negra por todo o corpo, cabelo roxo escuro preso em curto rabo de cavalo e usando a máscara de uma raposa preta revelando apenas seus olhos estreitos de lince, eles espiavam como duas pedras douradas. Shino era capaz de andar por qualquer área sem emitir um único som, não raramente sendo confundida com uma assombração. Sem dizer uma única palavra, como o fora desde que conhecera o grupo, entregou um pergaminho embrulhando algo à Gallath. Loghan observou a menina que não parecia ter mais que treze anos. Queria ao menos uma vez em sua vida ouvir a voz daquela criança.

Gallath examinou o conteúdo do pergaminho. Era um monte de terra úmida com um pedaço de vinha seca e limo. Sempre foi assim, ela nunca falou nada, nem escreveu. Quando se comunicava, o fazia por materiais enigmáticos apresentados ao paladino da justiça namalkahiano ou apontando para a direção a seguir. Cofiando o bigode, o cavaleiro tentou desvendar. Quando Shino lhe jogou uma pequena pedra com um buraco em seu meio finalmente descobriu.

- Então é isso? – o cavaleiro confiou algo ao ouvido de sua montaria que lhe respondeu com um relinchar demorado – Concordo, irmão! Sem dúvidas descobrimos a localização! Pela terra escura com resto de musgo e lodo, creio estarem em algum pântano ou charco próximo… A pedra com um orifício só pode significar uma caverna ou gruta!

Shino assentiu com a cabeça começando a andar em direção à saída da cidade, devagar, esperando que os companheiros a acompanhassem.

- Que o coice de Hippion me atinja! O que fazem parados? Sigam a companheira forasteira!

Sem rédeas, o cavaleiro apenas encostou a palma da mão esquerda em certo ponto do pescoço de Gawayn, como um gesto que indicava para que seguisse. Loghan guardou a arma batendo no sobre-tudo e erguendo a maleta negra de doutor, Donovan palitou os dentes de ouro e Sophie juntou as palmas das mãos orando pela proteção das vítimas do seqüestro que deviam estar indefesas e correndo perigo de vida.

Assim o inusitado grupo caminhou para fora da cidade desolada, passando por entre os troncos da densa floresta de pinheiros, seguindo em direção ao objetivo em algum charco pestilento. Tudo era assistido por gralhas, abutres e corvos que entoavam guinchos como uma canção repleta de agouro sobre os telhados da vila. O olho de um corvo em especial, de penas negras, mas com tonalidade avermelhada, se demorava no grupo que partia em missão.



- Realmente iiiinteressante! Hehahah! – a voz esganiçada escapuliu da garganta arranhada do homem sentado inconvenientemente sobre o altar abandonado da Deusa da Paz e com os olhos cobertos por suas mãos de dedos longos e unhas pontudas como garras. Ele balbuciava coisas e ria vez ou outra enquanto observava tudo pelos olhos de seu corvo familiar.

Em um ponto distante de onde a ave estava, e bem escondido no interior de um templo abandonado subterrâneo dedicado à Marah, deusa da paz, o homem de aparência insana espiava aqueles exóticos aventureiros que tentavam impedir seus planos. Ele trajava calças de couro, sobretudo negro aberto, peito nu, calvo pela enfermidade hospedada em seu corpo, de pele levemente tonalizada em rubro, olhos brancos de íris diminuídas em sua loucura estupenda, com eterno sorriso maquiavélico corrompendo sua face e estava usando um colar de três crânios vermelhos repletos de crostas de algo que parecia coral. Brincava com uma faca de lâmina enferrujada entre os dedos brevemente até arremessá-la contra parede quebrando-a. Alguns o chamavam de mestre, outros de líder, e os mais íntimos de Gregor Diranar, O Vermelho, líder do culto formado por homens que sobreviveram à praga e desenvolveram poderes graças a isso.

O louco tirou as mãos da frente dos olhos sem sobrancelhas, coçou a careca repleta de pequenas crostas de coral e caminhou descontraído em meio à audiência ajoelhada envolta deles até pegar sua faca quebrada. Eram por volta de cinqüenta pessoas trazidas à força de vilarejos desprotegidos ou de trilhas por onde buscavam a fuga daquele território pestilento. Homens e mulheres, velhos e adolescentes, adultos e crianças. Haviam de todos os tipos ali, amordaçados e atados atrás das costas por vinhas cheias de espinho que lhes rasgava a carne dos punhos. O líder balançou a cabeça negativamente, triste por ter que fazer aquilo a eles. Infelizmente deviam realmente desconhecer a dádiva divina que era aquilo que consideravam uma doença, seu dever sagrado era lhes mostrar como a praga na realidade era uma graça oferecida pelo panteão que selecionava uma nova raça eleita para povoar a superfície de Arton. Gregor derramou uma lágrima maculada só de imaginar que os deuses lhe deram o dever de guiá-los pelo caminho da verdade santa. Assim parou novamente diante da esquife aonde ainda havia um castiçal e o livro sagrado da deusa da paz, ali se sentando de pernas cruzadas e olhar contente. Abriu os braços e gargalhou quase como sem motivo aparente para então dizer com sua voz arranhada.

- SENHORAS E SENHORES! MENIIINOS E MENIIINAS! É CHEGADO O MOMENTO EM QUE SERÃO ELEGIIIDOS PELOS CÉUS PARA POVOAR ESTE REIIINO, LEVANDO A ELE AQUELES QUE REALMENTE MERECEM RESPIRAR OS ARES DE NOSSOS PINHEIIIROS! HEEEHAHAHAHAH!!! CHOREM DE EMOÇÃO, DEBATAM-SE CONTRA A MORTE, RESISTAM À TORTURA SAGRADA E ENTREGUEM-SE À ELA… À DÁDIVA!!! HEHAHAH!

Os dentes cheios de cáries de Gregor brilharam foscos com a luz das tochas enquanto os reféns derramavam lágrimas de horror e desespero. Qualquer um percebia de longe que aquele homem parecia ter fugido do mais perigoso hospício. E não era o único, pois havia outros humanos avermelhados ocultos em mantos pela câmara, uns eram tão monstruosos que chifres e espinhos de coral lhes saltavam às vestes. Um deles se aproximou do grande líder que roía compulsivamente a unha do mindinho esquerdo, extremamente dura, nunca rompendo-a.

- Vossa santidade, Gregor, nosso senhor… - disse uma voz masculina e retumbante sob o capuz que mostrava não mais que um lábio guardando dentes afiados de coral ladeados por comuns. O seguidor era acompanhado por um cão negro corrompido, saltando espinhos espiralados de suas costas e de olhos sem íris totalmente rubros, que babava constantemente em raiva, não atacando ninguém envolta graças às ordens de seu mestre – …os preparativos para a cerimônia estão prontos! As jaulas dos futuros escolhidos já estão prontas! Devemos dar início à exposição?

Gregor ouviu com atenção demente, observando cada um dos capturados. Após um breve momento falou.

- Não, não caro Yrther, há ciiinco pessoas que estão sendo traziiidas pelos deuses para cá! São possíííveiiis grandes candidatos à nova raça! Teste-os antes que entrem, desejo muiiito que ao menos um deles seja um de nós! Hehahah!
O seguidor de manto esperou a mão abençoada do líder lhe ser estendida para beijá-la, ferindo os lábios nos espinhos milagrosos ali crescidos. Então lambeu os beiços e distanciou-se para completar sua ordem, acompanhado de seu mastim que rosnava ininterruptamente para alguma alucinação que não saía de sua mente doentia.

Gregor pegou o livro de Marah, observou as páginas de pergaminho e começou a lê-lo sob a luz trêmula de uma vela acesa em um pires rachado e mofado que descansava no altar. Os dizeres narravam sobre paz, amor e alegria, tudo que desejava espalhar pelo mundo quando tivesse mais poder e influência com sua dádiva. A cada duas páginas lidas, arrancava-a com a lâmina gasta de sua faca e mastigava vagarosamente como que quisesse que aquelas palavras fizessem parte de si. Seu sorriso e risos periódicos nunca se alteravam, e assim aguardava pacientemente a chegada de seus magníficos convidados para dar início à magnânima cerimônia.

- HEEEHAHAHAH!

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