Mensagem
por DrLecter » 29 Ago 2015, 04:03
Os homens estavam à sua volta, olhando-o impassíveis. Armaduras escuras lhe davam um ar sinistro sob a iluminação turva vinda dos archotes. Ulf estava no centro de uma sala, ladeado por duas fileiras de homens perfilados, quase imóveis. Estava na companhia de outros três homens, mas não conseguia ver seus rostos. Poderiam se passar por construtos. Na frente deles, um homem olhava os novatos com olhos de vidro.
— Hoje, chegamos ao fim de uma jornada. — disse ele, sua voz ecoando por todo o recinto num tom solene. — Temos novos irmãos para integrar nossas fileiras.
“Vocês chegaram aqui como simples guerreiros que sabiam manejar espadas e beber em tavernas. Chegaram como meninos ainda agarrados às saias de suas mães. Ao adentrarem aquele portão, deixaram de serem o que eram para se tornarem o que são agora. Não eram ninguém, mas agora são nossos irmãos. Levantem-se, homens.”
Ulf se levantou e encarou o homem que falava. Seu rosto era enevoado, quase impossível de se distinguir. Tudo tinha uma estranha sensação de familiaridade, como se fosse uma vida passada ou uma lembrança tão antiga que não conseguia dizer com precisão quando e onde acontecera.
O homem que falava fez um gesto e outros homens apareceram, carregando aparelhos estranhos nas mãos.
— Receberão a nossa marca, para que se lembrem quem são e pelo que lutam. — o homem falou novamente, e os outros começaram a agir, arrancando as mangas das camisas dos novatos e começando seu trabalho. Ulf permaneceu imóvel, sentindo uma dor incômoda na pele enquanto um de seus irmãos lhe dava a tão almejada marca. Suportara dor, cansaço, sono e desconforto, mas tudo isso parecia pequeno em comparação ao que conquistara agora.
Com o mesmo orgulho estoico que o conduzira até ali, o jovem ergueu os olhos para o estandarte preso na parede, atrás do homem que falava.
Um corvo sentado sobre um crânio, com uma faixa abaixo estampando um lema. Ulf conhecia aquelas palavras, escritas numa caligrafia criptografada e conhecida apenas pelos irmãos de armas. Recitou as palavras mentalmente, mas não se lembrou delas. No estandarte, o corvo pareceu mover a cabeça e encara-lo. Deu um piado esganiçado, abriu as asas. Ulf teve a impressão de que dizia alguma coisa.
O pássaro bateu asas e saiu para fora do tecido, voando em sua direção. As garras vinham na frente, como num bote. Piou novamente uma palavra.
Luz!
***
— Ulf — a voz de Petra chamou. — Está tudo bem?
Ulf despertou para a realidade, como se estivesse dormindo o tempo todo. Estavam os dois numa rua apertada de Malpetrin, entre vendedores que gritavam ofertas e clientes que procuravam os melhores preços. Petra ia à frente, observando vegetais que fariam parte das receitas servidas na Estalagem do Macaco Empalhado. Ele apenas a acompanhava, carregando algumas sacolas com os ingredientes que a moça já tinha comprado.
— Desculpe. — ele respondeu, depois de tentar disfarçar. — Eu só estava distraído.
Petra olhou-o com a testa franzida.
— Você é meio distraído, mesmo. — comentou, sem ter certeza do que falava. — Aconteceu alguma coisa? Está lembrando de algo?
Ele ficou quieto, pensando no que poderia responder. Por algum motivo, achou que seria melhor omitir o que pudesse.
— Não.
A moça olhou para ele, um tanto desconfiada. Porém, a desconfiança durou pouco. Logo, estava andando novamente avaliando tomates para algum molho. Ulf sentiu-se aliviado.
Fazia pouco mais de um mês que fora encontrado numa estrada próxima a Malpetrin, cheio de lesões e inconsciente. Naquele dia, Petra chegara a pensar que estava morto, mas percebeu que estava respirando e segurando um chifre cortado nas mãos. Não carregava mais nada além disso, e a falta de memória tornava tudo ainda mais intrigante. Depois de desperto, passou a ajuda-la nos pequenos afazeres da estalagem.
Na maior parte do tempo, Ulf permanecia quieto e aparentemente distante. O que quer que fizesse, fazia em silêncio e numa disciplina que lembrava um colosso. Não se importava em fazer nada que lhe fosse pedido e aprendia com grande facilidade o que lhe ensinassem. Podia varrer a estalagem, carregar compras, acender o fogão, limpar panelas, qualquer coisa. Ruud, o dono da estalagem, não se importava em lhe dar um teto em comida em troca de seus serviços, sempre bem feitos, embora o estranho não revelasse nada de seu passado.
Por alguns dias, Petra pensou em pedir ao seu pai que fizesse alguma magia para ajudar o novo colega de trabalho a se lembrar do passado. Porém, o pai estava longe, em Valkaria, conduzindo alguma pesquisa de magia qualquer. O tempo não mudara muito o hábito que o pai tinha de se manter distante, sempre com a desconfiança de algo ruim acontecer. No passado, ela tinha pensado que o pai não gostava dela, mas isso fora há dez anos, na época em que Tork aparecera.
Os dois passaram pela feira, avaliando produtos e comprando o que era preciso. Malpetrin, longe da influência dos minotauros e seus dogmas de dominação. A cidade concentrava toda a população livre de Petrynia, e era o lar de muitos grupos de aventureiros. Por onde quer que olhasse, era possível ver alguém de uma raça exótica, armas de diversos tipos, excentricidades que brotavam de todos os cantos. Embora não fosse tão grande quanto Valkaria ou rica como Vectora, Malpetrin era a cidade onde tudo acontecia.
— Você já esteve em muitos lugares, não? — perguntou ela, apenas para quebrar o silêncio.
Ulf encarou-a por alguns segundos. Ajeitou a cesta cheia de legumes no braço, depois que a alça deixou uma marca vermelha na pele.
— Por que pergunta?
A moça deu de ombros e olhou para o lado, onde um grupo de crianças passava brincando. Risadas ecoavam pela rua, no meio daquele burburinho.
— Às vezes, tenho essa impressão. — falou, num fio de voz. — Encontrei você num dia depois de uma chuva tão forte. Você estava caído na estrada, há algumas horas daqui. Estava bastante ferido.
Ele ficou sem reação por alguns segundos. Mesmo depois de todo aquele tempo, Ulf não conseguia se lembrar do que o levara para aquela estrada naquele dia. Às vezes, sentia que tinha algo a fazer e estava deixando seu objetivo de lado enquanto descascava batatas e carregava para fora o lixo da estalagem. Porém, o que quer que tivesse de fazer estava esquecido num espaço vazio em sua memória.
— Você sabe que ferimentos eram aqueles? — perguntou.
— Ferimentos de luta. — a resposta veio sem muita demora. — Já vi ferimentos como aquele, quando cuidava do Tork. Os seus não são muito diferentes. Você tem muitas cicatrizes.
Petra ficou repentinamente corada. Virou o rosto em outra direção, tentando esconder o rubor enquanto se lembrava de que tivera que cortar as roupas sujas e ensanguentadas que ele usava quando fora encontrado. Havia lama em cada centímetro de sua pele, muitas cicatrizes e uma tatuagem no braço esquerdo: um corvo sobre um crânio e um lema abaixo, escrito numa língua que ela não conhecia. No começo, cogitou a possibilidade de perguntar a ele o que significava aquilo. Porém, a falta de memória tornou a tarefa impossível.
— Por isso — ela continuou, sem se importar se Ulf a ouvia ou não. —, acho que você era aventureiro.
Ulf não prestou atenção. Os olhos escuros e gelados estavam fixos em algum ponto atrás dos dois. A moça nunca tinha o tinha visto assumir aquela expressão séria e compenetrada, completamente desprovida de humanidade. Por um segundo, pensou ver seus músculos se retesando, como que prontos para a ação. Ele segurava a alça da cesta com força, quase partindo-a. As mãos também alimentavam suas suspeitas: fortes, ásperas e cheias de calos, típicas de alguém acostumado a empunhar armas.
— Está tudo bem?
A pergunta ecoou por alguns segundos, sem resposta alguma. De repente, Ulf não estava mais ali. Estava longe, em algum momento de seu nebuloso passado.
***
Ele estava bêbado. Sabia que estava porque a cabeça parecia um balão goblin cheio de ar flutuando pelo céu de Arton. As pernas não obedeciam seus comandos direito e a visão parecia ficar turva. O mundo parecia se mover de maneira vagarosa, como se todos estivessem dentro de um aquário. Os sons chegavam aos seus ouvidos de maneira distorcida.
Ulf cambaleou para fora da taverna depois de deixar algumas moedas sobre o balcão de madeira escura e manchada. Era final de tarde, num momento em que Azgher começava sua caminhada em direção ao poente. A luz alaranjada refletia aqui e ali, ofuscando seus olhos. Reclamou, colocando a mão na frente do rosto para se proteger. Não percebeu a chegada dos estranhos que o olhavam com curiosidade.
Fechou os olhos e quando os abriu, estava num quarto de estalagem barata, diante de um homem atarracado de mãos grandes e uma barba castanha que lhe cobria o queixo. Ao seu lado, havia outro homem, grande e careca. Ambos o olhavam com os braços cruzados e olhares de reprova.
— Não acredito que você se tornou isso. — resmungou o barbudo, num sotaque típico de Zakharov. — Me diga, garoto, qual é o seu nome?
Ulf lhe disse, com a língua áspera e amarga. Gosto de vinho ainda na boca.
— É ele mesmo. — falou o grandalhão, quase num sussurro. — Ele é parecido com o Carvalho.
O jovem franziu a testa.
— Quem é Carvalho?
O barbudo fez um trejeito com a boca. Ulf notou o cigarro queimando e deixando cair cinzas no chão.
— Peter, seu pai. Nós o chamamos de Carvalho. — e gesticulou, indiferente. — Uma longa história, que não convém contar agora.
— Quem são vocês?
— Amigos de seu pai. Você pode me chamar de Ogro. — dessa vez, o grandalhão respondeu primeiro. — Esse aqui é o Bode. Estives procurando por você e sua irmã nos últimos tempos, a pedido dele. Desde que vocês deixaram aquela casa no interior do reino, para ser mais exato. Vocês sumiram.
Ulf piscou com força e se sentou. A lembrança de sua irmã o fez ter vontade de beber outra vez.
— Éramos aventureiros. — contou. — Lutamos contra os minotauros.
— E perderam, pelo jeito. — comentou o zakharoviano. — Garoto, é o seguinte: procuramos vocês durante todo esse tempo, e estou cansando de andar para lá e para cá. E também não achei que encontrar o garoto de quem Carvalho tanto falava nesse estado deplorável.
— Eles levaram-na como escrava. — Ulf explodiu, tentando se levantar. Porém, a cabeça estava pesada demais para isso.
— E você resolveu se acabar na bebida em vez de fazer algo decente. — Bode soprou uma nuvem de fumaça para cima. Os olhos completamente indiferentes ao sofrimento dele. — Deplorável, garoto. Deplorável.
Os três ficaram em silêncio por alguns segundos. O jovem, com a mente mais clara agora, pareceu raciocinar pela primeira vez na conversa.
— Por que me procuraram? — perguntou.
— Seu pai tinha coisas para vocês. — respondeu Bode. — Herança, por assim dizer. Foi oferecida à sua mãe, mas ela recusou tudo que pudesse remeter a um aventureiro como seu pai. Então, decidimos procurar vocês e lhes entregar. Mas as coisas não saíram bem como o esperado.
— O que vocês trouxeram?
Bode deu mais uma tragada. Ficou um pouco em silêncio.
— Nada. Seu pai pediu que a sua parte da herança fosse deixada em um lugar onde só você teria acesso. Nós vamos te levar até lá, se aceitar vir conosco.
— Onde fica esse lugar?
— Não posso dizer. Não por enquanto. Mais alguma pergunta?
— E o que vocês são?
Ogro e Bode se entreolharam por alguns segundos. Bode deu de ombros.
— Aventureiros. — replicou. — Agora, chega de perguntas. Você pode ficar aí, se acabando na bebida, ou pode vir conosco buscar o que seu pai deixou para você. Talvez, no caminho, você acabe se interessando mais por saber o que seu pai fazia antes de morrer. Com sorte, você saiu minimamente parecido com ele e pode aprender uma coisa ou duas com a gente.
Ulf levantou-se, escorando na parede. Não evitou o sorriso de canto cheio de sarcasmo.
— Aprender com vocês? — indagou. — O que vocês teriam para ensinar? Apelidos bizarros?
Os dois homens se entreolharam de novo. Bode deu um sorriso maléfico para cima do mais novo.
— Isso e mais algumas coisas. — falou. — Você vai ver só, poltrão.
***
A lembrança foi embora da mesma forma que chegou. Ulf sacudiu a cabeça, lembrando-se daquela rua e da taverna logo ali, onde se embebedara. Bode e Ogro eram nomes estranhos, mas ao mesmo tempo familiares. De alguma forma, ele sabia que aqueles dois tinham tido um papel importante no passado.
— Você está bem? — novamente, a pergunta de Petra o deixou desconfortável. A cada vez que ela perguntava aquilo, jogava sobre ele alguma expectativa. — Lembrou de alguma coisa?
Ele a encarou por alguns segundos. Por algum motivo, achou melhor mantê-la protegida de algumas respostas. Pelo menos por ora.
— Não.
Petra deu de ombros e segurou seu braço.
— Não se preocupe, você vai se lembrar. Vamos, Ruud está nos esperando.
Ulf acompanhou-a de volta para a estalagem. Dessa vez, não olhou para trás.
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