Contos

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Galahad
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Re: Contos

Mensagem por Galahad » 02 Out 2015, 21:02

Aeeew \o/
No guardo por mais contos e mais fichas.
Gostei da ficha da Meredith

DrLecter
Mensagens: 34
Registrado em: 17 Jun 2015, 18:51

O Cabaré

Mensagem por DrLecter » 15 Mai 2017, 21:00

Olá, pessoal. Sim, fiquei mais de um ano ausente. Sim, sei que a maioria não vai se lembrar de mim ou do que eu escrevi no fórum. Mas aqui vou eu, voltar a postar alguma coisa que seja decente, porque os contos que eu escrevi ainda estão aqui e me deu vontade de voltar a escreve-los. então, fiquem à vontade pra ler tudo que quiserem e me dizer o que acham.

Ah, só uma coisa: o conto está cheio de referências. Quero ver vocês captando cada uma delas e rindo muito com isso. hahaha

Espero que gostem.
---

NAQUELE MOMENTO, O MUNDO PARECIA ESTAR ZOMBANDO DE SUA CARA.

Meredith encarou o teto acima dela, ouvindo o mundo lá fora silenciar aos poucos. Lá fora, a noite em Malpetrin parecia perfeita, menos ali dentro. Ali dentro, naquele quarto espaçoso, a jovem sentia-se traída, desiludida e com raiva de cada segundo em que ousara pensar que o tormento teria fim. Odiava-se por um dia ter confiado em Sahyd, naquele momento de mais puro desespero. Talvez fosse melhor ter ficado com o achbuld.

A ideia lhe pareceu tentadora nos primeiros segundos. Seria uma boa ideia, uma espécie de insulto ao maldito qareen. Talvez devesse conversar com algumas pessoas de seu novo lar, fazer alguns contatos e logo teria mais algumas doses em mãos. No entanto, ao mesmo tempo em que pensava em se entregar à rebeldia sem propósito, pensava em como ficara nos dias de vício. Aquilo não fora legal. Nem um pouco.

Levantou-se da cama e sacudiu a cabeça, depois foi para a janela olhar a noite atrás das grades. O quarto onde estava era luxuoso, duas vezes maior do que seu quarto em Calacala, com móveis caros e alguns presentes que ganhara nos últimos dias. Tudo mentira, pensou. Era bem cuidada, mas nada daquilo mudava o fato de estar presa. Sentia-se sufocada. Violada. Condenada. E por um segundo, chegou a pensar que pendurar-se nos lençóis pela garganta seria uma boa ideia.

Segundos depois, sentiu-se idiota. Estava novamente se comportando como uma garotinha indefesa que não sabia resolver os próprios problemas. Dar cabo na própria vida seria apenas mais uma saída fácil para tudo. Aqueles malditos a encontrariam na manhã seguinte dependurada no teto e lamentariam por alguns dias, apenas para continuar escravizando e violando mais mulheres mundo afora. Voltar ao achbuld seria ainda pior — omitir-se a respeito de tudo que acontecia era quase uma covardia. Meredith não era nenhuma guerreira, mas covardia não estava em seu dicionário. Não quando sua liberdade e seu irmão poderiam estar tão perto.

Sentou-se em frente à penteadeira que havia no cômodo. De olhos fixos no espelho, começou a pôr a mente para trabalhar. Precisava de um plano.

***

Dias atrás, quando Meredith chegara em Malpetrin, a vida lhe parecia um mar de possibilidades. Ela estava em território livre, longe das garras de minotauros e pronta para revirar o mundo atrás de alguma notícia de Ulf. Sahyd estava com ela e se dera o trabalho de afanar uma bolsa cheia de Tibares antes de ambos saírem do prostíbulo, e isso era bom para que os dois pudessem ter um teto, roupas novas e comida durante um tempo — apenas o suficiente para que ela pudesse ter seus equipamentos de volta e voltar à vida de aventureira. Estar livre lhe deixava inquieta, com vontade de fazer tudo e nada.

Sahyd a levara para uma taverna luxuosa, localizada num bairro nobre de Malpetrin. Estavam longe das ruas movimentadas e apinhadas de aventureiros, mas ela não se importou. Olhava deslumbrada para cada canto, cada carruagem que passava, cada detalhe de decoração que não entedia, mas apreciava. Vez ou outra, o qareen fazia algum comentário sobre a arquitetura ou algum detalhe sobre o vestido de alguma dama que passava. Meredith apenas olhava e achava que tudo era lindo, apenas porque estava livre. Até então, ela não notara que ele estivera simplesmente distraindo-a para que não prestasse atenção no resto.

Ela não percebeu que na taverna, Sahyd parecia já ser conhecido. Garçons o cumprimentavam como um velho frequentador do lugar e algumas pessoas acenavam para ele casualmente. Havia muita gente ali, mas nenhum parecia ser aventureiro — apenas nobres empolados com olhar entediado e cochichos de canto, enquanto um bardo tocava um violino ao canto. Meredith crescera no interior do reino, sem muito contato com gente rica ou nobre e sabia que, embora estivesse no reino das histórias fantásticas, os aventureiros não se encontravam ali. Comeu a comida que lhe serviram e forçou-se a se lembrar das lições de boas maneiras que seu amigo lhe dera durante a estadia em Calacala.

— Acho esse lugar estranho. — comentou, em determinado momento. Sahyd deu de ombros.
— Por que?

— Chique demais. — ela olhou em volta e torceu o nariz. — Eu não me lembro de te ver pegando tanto dinheiro assim. Acredite: eu saberia como pegar mais dinheiro, se você tivesse deixado.

O qareen riu e se inclinou sobre a mesa depois de um gole na xícara de porcelana. Pediu que ela desse um gole. O que quer que estivesse ali, parecia água suja e morna.

— Não quero que você se rebaixe a esse tipo de prática, querida. — disse. — Roubar, ou o que quer que você fazia antes de me conhecer era algo baixo, sem classe. Os tempos são outros agora.

Mais um gole, para fazer uma pausa dramática. Meredith decidiu que detestava a forma como ele deixava o mindinho esticado enquanto segurava com os dedos na asa da xícara.
— Sou uma aventureira, Sahyd. — rosnou, por detrás dos talheres. — Você sempre soube disso, e foi por isso que me ensinou os truques com a sombra.
Sahyd pousou a xícara sobre o pires e a encarou por alguns segundos. Respirou fundo, como se escolhesse as palavras. Pela primeira vez em quase um ano de convivência, ela percebeu que ele realmente tinha um ar afetado. Ficava ainda mais evidente quando estava contrariado.

— Querida — novamente, a voz aveludada e o indicador roçando nas costas de sua mão. —, me partia o coração ver você daquele jeito, com aqueles olhos mortiços de quem mastigou achbuld até os dentes ficarem verdes. Você sabe, sou alguém desprovido de compromissos. Viva e deixe viver, esse é o meu lema. Se a moça quer ganhar a vida se deitando com minotauros, eu não vou julgar e ficar de sentimentalismo. Vou ajudar a moça a agradar um minotauro rico e ter uma boa vida. Isso pra mim é uma boa ação. Se enfiar em masmorras e fazer atentados por aí, por outro lado...

— Está dizendo que nunca quis se aventurar?

O qareen deu de ombros, maneou a cabeça.

— Não exatamente. Frequentei a Academia Arcana, me entediei logo que percebi que aquilo era chato. Aí passei um tempo num circo e conheci um feiticeiro magnífico. — ele pontuou cada sílaba. — Logo me entediei, também. Nessas andanças, conheci aquela casa onde nos conhecemos e quando me entediou, decidi te acompanhar. Não iria conseguir te convencer a ficar ali e se casar com Titus, de qualquer maneira.

Ela ficou olhando para ele, perplexa. Jurava que encontrara um parceiro para suas viagens. Agora sentia-se uma garotinha ingênua que nunca pensara muito nas coisas.

— Preciso encontrar meu irmão, Sahyd. — foi seu último argumento.

Ele, no entanto, não pareceu se convencer. Pegou sua mão, num toque suave de alguém que nunca tinha precisado mexer com cordas, escalar paredes ou segurar armas. Até Chloe teria mais calos que ele, por causa dos rolos de pergaminho que escrevia por horas a fio. Era óbvio que não era um aventureiro.

— Seu irmão está completamente fora do seu alcance, querida. — falou. Seu tom de voz lembrava em muito a forma como o clérigo local lhe contara sobre a morte da mãe, anos atrás. — Você não sabe o que aconteceu com ele, e é provável que tenha morrido na luta que a levou para Calacala.

Ela trincou os dentes. Não queria pensar naquilo. Encontrar seu irmão era o que a manteve sã nos momentos em que o vício por achbuld ameaçava voltar. Era o que a manteve nos trilhos quando tinha vontade de degolar cada minotauro que a tocara no último ano. Era o que lhe dava vontade de continuar viva. Sahyd não podia brincar com ela daquela forma.

No entanto, não teve como responder. A visão ficou turva, os sentidos se embaralharam. Os sons pareciam se ampliar e distorcer, fazendo-a ouvir vozes extremamente graves e palavras tão lentas que sua pronúncia se perdia no ar. Sahyd ainda a encarava, com os olhos tão negros quanto a noite. Atrás dele, uma figura grande e larga a olhava de cima. Jurou estar diante de um homem com cabeça de touro.

Apagou.

***

Acordou naquele quarto, não sabia dizer quanto tempo depois. O qareen a olhava encostado na penteadeira, preparando-se para explicar toda aquela história. Ela olhou em volta, procurando a adaga que carregava consigo. Desistiu segundos depois, ao pensar que Sahyd não a deixaria armada depois de traí-la.

— O que foi que você fez? — indagou, a voz carregada de raiva.

— Trouxe você aqui. Estava ficando muito nervosa e eu não queria fazer vexame no meio dos outros clientes. — o outro explicou, sem olhar para ela. — Você não é mais uma garota bronca do campo, querida. Precisa se lembrar disso.

— Sahyd, pare com essa brincadeira. Não tem graça.

Ele a olhou por alguns segundos. Respirou fundo.

— Não é brincadeira, Meredith. — contou. — Veja bem: eu nunca disse que iríamos viajar. Eu disse que te traria para Malpetrin. A parte de voltar a ser aventureira e buscar pelo seu irmão foi invenção sua.

— Então por que não me disse? Você não precisava ter me prendido aqui. Eu iria embora logo que chegasse. Nunca te pedi que viesse comigo.

O mago deixou pender a cabeça. Parecia querer rir.

— Querida, você era parte de um negócio que eu fiz antes de vir para cá. — disse. — Eu estava me entediando da vida em Calacala. Decidi que precisava de novos ares, novos desafios no ramo. Negociei um atentado naquele prostíbulo como um favor ao meu novo patrão. Ele é um minotauro importante que não gostava do nosso antigo patrão. Ele atrapalhava nos negócios. Decidi trazer você de presente.
Meredith sentiu seu estômago revirar. Nunca esperara aquilo de alguém que considerava um amigo. Pensou poder contar com ele nos piores momentos no último ano e ouvir a verdade era doloroso demais. No entanto, saber que tudo aquilo fora apenas uma mentira para ganhar sua confiança doía mais ainda. No final das contas, ela não tinha deixado de ser uma escrava. Apenas se dera conta disso.

— Sahyd, você... — não conseguiu completar a frase. Os olhos se encheram de lágrimas e as palavras estavam embaralhadas demais na cabeça para serem verbalizadas.

— Você vai se dar bem, querida. — disse. — Bartius não é um minotauro qualquer como aqueles provincianos de Calacala. É um homem de respeito.

— É um minotauro. — cuspiu a jovem. — Respeito e minotauros não são palavras que se relacionam de maneira positiva.

— Você está exagerando. Daqui a pouco vai vestir uma armadura, brandir uma espada e se dizer paladina dos deuses. — Sahyd fez um tom zombeteiro que só serviu para piorar a situação. Porém, antes que a jovem fizesse alguma coisa, ele saiu pela porta, trancando-a pelo lado de fora. Meredith estava sozinha outra vez, numa situação pior do que antes. Precisava de um plano. E logo.

***

Os telhados de Malpetrin formavam uma ótima rota de fuga. Ficava ainda melhor quando se tratava de fugir de minotauros, que odiavam qualquer coisa que estivesse a alguns metros do chão. Dessa forma, fugir deles se tornava muito mais fácil do que se imaginava. Bastava um pouco de esperteza, rapidez e uma pequena dose de ousadia — esta, aliás, nem todos tinham. Porém, esse não era o caso de Kazuki.

Caminhou por um telhado qualquer, depois saltou em direção a um muro que cercava a construção. Equilibrou-se em cada passo, abrindo os braços para não cair. Perto do fim do muro, pulou na rua, escondendo-se na sombra que se projetava. Depois de virar uma esquina, viu um grande cão branco com manchas castanhas. Um dos olhos tinha uma mancha negra, e ele sacudiu a cauda ao ver o recém-chegado.

— Cheguei, Bolota. — disse, afagando o alto da cabeça do cão. — Onde estão os outros?

Como forma de resposta, Bolota trotou para dentro de uma sombra, além daquela rua. Kazuki o seguiu despreocupado. Passos depois, encontrou uma porta gasta onde deu uma batida característica. Em segundos, a porta se entreabriu.

— As cerejeiras florescem em nossa terra? — perguntou uma voz baixa, em tamuraniano.

— Não sei. Há muito que não a vejo. — a resposta veio logo depois, também em tamuraniano. Logo depois, a porta se abriu.

Kazuki entrou numa casa escura e fechada, iluminada com umas poucas velas que só serviam para deixar tudo numa penumbra. À frente dele, estava um rapaz tamuraniano com pouco mais de vinte anos, cabelos brancos e olhos de um vermelho incandescente que o denunciavam como lefou. Havia também um halfling que usava costeletas loiras e um homem alto e magro com cabeça e cauda de gato. Bolota correu para dentro da casa e pulou sobre o hafling, lambendo sua bochecha.

— Já vou te dar comida, garoto. — falou, depois voltou sua atenção para o recém chegado. — Como foi o passeio?

— Consegui o que queríamos. — disse, e jogou sobre uma mesa um saco com mantimentos para os próximos dias. — E tenho notícias.

O tamuraniano de cabelos brancos ergueu os olhos para ele, curioso.

— Fale logo.

— O qareen voltou. Dessa vez, veio acompanhado de uma garota bonita e bem vestida. Trajes típicos das mulheres de Tapista. Isso te diz algo, Fergus?

O herdeiro do gato balançou a cabeça, mão no queixo. Os olhos estavam fixos no chão. Ao lado dele, Bolota brincava com Pimbo, seu dono. O halfling parou com a brincadeira subitamente e olhou para os companheiros, visivelmente interessado no assunto.

— Ele está traficando mulheres para cá. — falouFergus. — De alguma forma, ele consegue trazer essas mulheres até aqui e as coloca sob o jugo de Bartius. O fato de ela vir vestida com trajes tapistanos indica que ela veio de lá só reforça a suspeita de ligação prévia com minotauros. Eles estão se infiltrando em Malpetrin, senhores.

O ar ficou pesado de repente. O herdeiro do gato não estava brincando, embora seus trajes coloridos e sua postura sempre descontraída não ajudassem a manter aquele ar de seriedade por muito tempo. Apesar disso, Fergus era um dos membros mais influentes da Resistência — o movimento que coordenava ações de insurgência contra o Império de Tauron, sediado na única cidade livre em todo o território conquistado pelos minotauros nos últimos anos.

— Faz mais de um ano que esse qareen deixou a cidade. — disseKazuki. — Depois de todo esse tempo, trazer apenas uma garota não seria pouco para quem pode estar traficando?

— Isso é verdade. — concordouFergus. — Alguma coisa fez esse qareen se mover devagar. Mas não podemos deixar de acompanhar seus passos, principalmente se aquela taverna começar a receber novas mulheres.

Houve um segundo de silêncio. Em um canto da sala, Bolota lambia uma tigela em que até agora a pouco havia comida.

— Precisamos de mais informações. — concluiu Sousuke, o samurai. — Isso significa incursão.

***

A casa estava cheia. Meredith olhava para a plateia por detrás do palco, metida em um vestido vaporoso que a fazia se sentir nua. O cabelo estava perfumado e penteado de forma a parecer natural, e havia joias que ganhara de Bartius como um incentivo para que ela fizesse bem seu trabalho. Sahyd estava por perto, coordenando as apresentações da noite enquanto mantinha um olho bem aberto para vigia-la.

— Boa noite, senhoras e senhores — a voz do qareen, ampliada por magia, ecoou por todo o salão. — Bem-vindos ao cabaré Monte Parnaso, onde tudo é feito para o seu prazer. Esta noite, trazemos inúmeras atrações ao nosso estimado público, começando por uma bela apresentação de abertura com Joy Paixão e Carlinhos, o mestre do alaúde!

Luzes mágicas se acenderam no palco. Das coxias, saiu uma mulher alta e magra, de cabelos loiros cacheados e cheios, orelhas pontudas denunciando que havia sangue élfico misturado em suas veias. Embora fosse uma bela mulher, Meredith percebeu que já não era mais tão jovem. Ao seu lado, estava um humano baixo e gorducho tocava um alaúde. Ele tinha o cabelo castanho, mas algum composto alquímico tinha deixado um tufo de cabelo loiro no topo da cabeça. Apesar de ser chamado de mestre do alaúde, Carlinhos não tocava melhor do que qualquer outro bardo. Joy Paixão, por outro lado, cantava e dançava com exuberância, mas a voz já parecia cansada e as letras soavam um tanto cafonas para a jovem.

— Espero que esteja gostando da noite. — disse uma voz desconhecida, atrás dela. — Mas saiba que o melhor fica sempre para depois.
Meredith virou-se para encontrar um homem de cabelo comprido e liso, roupas chamativas e um sorriso canalha no rosto. Com uma camisa vermelha de mangas largas, anéis brilhantes nos dedos e brincos, parecia um artista de circo. O sorriso canalha deixava claro todas as suas intenções para com ela.

— Quem é você? — perguntou ela. O homem ergueu a sobrancelha, como se tentasse ignorar um pequeno insulto.

— Wendell Sedução, e o prazer é todo seu. — falou, tomando sua mão e depositando um beijo. Meredith quase riu daquela apresentação canhestra, mas tinha aprendido a disfarçar bem o que pensava. — E a senhorita?

— Meredith Morgstein. — respondeu. — Cheguei recentemente, com Sahyd.
Wendell sacudiu a cabeça.

— Aquele qareen tem bom gosto, devo reconhecer. Gostaria de alguma bebida?
Ela olhou para o palco, onde Joy Paixão cantava e dançava uma música cuja letra falava de um eu-lírico apaixonado pela Lua e ressentido de uma suposta traição cometida por ela. Decidiu que precisava mesmo de um gole ou dois para suportar aquilo.
Wendell a levou para uma ala próxima dali, reservada apenas aos artistas que se apresentavam. Era uma espécie de festa privativa, onde os artistas relaxavam antes e depois de suas apresentações. Havia uma mesa com petiscos e bebida à vontade. Bailarinos andavam às pressas por ali, aprontando-se para a próxima apresentação enquanto Sahyd solucionava problemas de última hora — um vestido que estava com a costura solta, uma bailarina que resolvia passar mal de nervosismo, alguém que se esquecia de um trecho da coreografia, pequenos chiliques de Joy Paixão, entre uma troca e outra de figurino.

— Não sabia dessa área. — falou a garota.

— Cada artista tem o seu camarim, mais para os fundos, onde podem se preparar e receber convidados antes e depois das apresentações. — contou Wendell. — Mas esse é um luxo que apenas os artistas principais possuem. Os demais músicos e bailarinos compartilham essas salas maiores, onde se preparam. Essa área em comum serve como salão comunal, onde podemos conversar enquanto esperamos pela nossa vez de entrar no palco e desejamos sorte aos nossos amigos.
Meredith correu os olhos pelo lugar. Num canto mais afastado, uma bailarina parecia estar em transe, com os olhos perdidos em algum canto no teto. A experiência lhe dizia que aquilo era o efeito de achbuld. Sentiu um nó na garganta.

— Convidada nova, Wendell? — outra voz, igualmente desconhecida.

— É a garota que chegou recentemente com Sahyd — respondeu o outro. — Meredith, este é Lindo, um dos artistas da casa.

Meredith virou a cabeça para a direção de onde vinha a pergunta e encontrou um homem na casa dos trinta anos com o cabelo cheio de tranças e pintado em um tom bizarro de loiro que não combinava em nada com sua pele morena. Ela percebeu que, por alguma razão, aqueles artistas pareciam ter uma estranha fascinação com cabelos loiros, embora nenhum deles conseguisse chegar a um tom que se parecesse com loiro natural. Lindo vestia-se com roupas um pouco mais discretas que Wendell, mas mesmo assim parecia alguém que entrara numa alfaiataria cara apenas por saber que aquele era um lugar onde se vendiam roupas sofisticadas, sem se preocupar com o que lhe caía bem. Por fim, concluiu que Lindo não era um nome que se adequava a ele.

— Esse é seu nome de verdade? — indagou, esquecendo-se das boas maneiras por um segundo. Os dois homens riram.

— Não, mas como me chamam. — respondeu Lindo. — Acho que minha beleza suplantou meu verdadeiro nome.
Acho que isso foi só uma piada que você não entendeu, respondeu mentalmente Meredith, mas concluiu que se Lindo vivia na ilusão de que era realmente bonito, não seria ela a acabar com isso.

Ela aceitou o pequeno cálice que Wendell lhe trouxera, ainda prestando atenção na conversa de Lindo. Todos ali, de alguma forma, já tinham feito sucesso em círculos artísticos mais altos, mas a sorte não tinha sido lá muito gentil com nenhum. Por isso, todos se apresentavam naquele cabaré frequentado por nobres empolados e novos ricos sem muito refinamento. No entanto, a recente chegada dos minotauros aquele cabaré tinha trazido um ar de inovação ao lugar, que agora parecia muito mais sofisticado.

Alguém disse que a próxima apresentação seria a de Lindo. Ele deu um último gole no vinho e se despediu de Meredith indo em direção ao palco. Vários bailarinos o seguiram, enquanto a voz de Sahyd ecoava pelo salão.

— Senhoras e senhores, recebam a nossa próxima atração, Lindo!

Começou uma canção lenta, apropriada para ser dançada por casais, bem diferente do estilo dançante e agitado cantado por Joy Paixão, que agora voltava para a ala privativa emburrada e discutindo com Carlinhos.

— Você não devia ter inventado aquele solo! — ralhou a meio-elfa. — Eu sou a estrela desse espetáculo! Você é só um músico acompanhante com algum destaque.

— Fique quieta, mulher. — retrucou Carlinhos. — Você nem é tudo isso. Ninguém mais suporta esse seu gritinho irritante que você insiste em repetir há quase quinze anos.
Joy pareceu lívida ante à resposta do companheiro, mas não conseguiu dar resposta alguma naquele momento. Apenas empinou o nariz e trotou para dentro de seu camarim, seguida por algumas bailarinas que formavam seu círculo particular de bajuladoras.

Wendell ofereceu mais vinho. Definitivamente, Meredith precisava daquilo.

— Eles são assim desde que os conheço. — contou. — Teoricamente, são casados, mas Carlinhos vive dando escapadas para a cama de outras mulheres e isso deixa Joy louca. Ela odeia lembrar que já não é tão jovem e odeia mais ainda que falem mal sobre seu grito característico nas apresentações. Ela diz que é sua assinatura artística.

— Aquele grito desafinado e sem sentido? — indagou Meredith. Wendell fez para ela sinal de silêncio.

— Não fale isso muito alto, garota. Ela pode ouvir. — falou, depois de uma risada. — Diz ela que aquele grito é seu nome traduzido para a língua élfica. Kallipsion. — ele tentou pronunciar a palavra, mas não conseguiu. — Bem, de qualquer forma, é o que ela considera sua assinatura. Não fale disso na frente dela, nem na frente de ninguém que possa contar a ela. As consequências são terríveis.


— Quais são as consequências? — perguntou ela, desafiadora. Wendell fez uma careta.

— Ter um avatar de Megalokk andando pelo cabaré, espumando de raiva. Acredite, você não vai querer ver.
Houve uma pequena risada. Meredith já sentia os efeitos do vinho. No palco, Lindo cantava uma música cuja letra expressava o sentimento ambíguo de alguém que se deita com uma pessoa pensando na outra. Ou, como era o caso do eu-lírico da música, com oito pessoas.

— Venha, dance um pouco comigo — convidou Wendell, sem esperar por uma resposta. Quando se deu conta, já estava sendo conduzida numa dança lenta.

Ficaram alguns minutos em silêncio, apenas ouvindo a música que vinha do palco. Prestando atenção na letra, Meredith se deu conta de que precisava se distrair para não ouvir mais daquela ladainha horrível.

— Por que te chamam de Wendell Sedução? — perguntou a primeira coisa que lhe veio à cabeça.

Ele riu.

— Porque tenho certas... habilidades com mulheres.

Ela fingiu uma expressão de curiosidade desafiadora. Não tinha interesse nenhum em saber quais eram aquelas habilidades, mas seu tempo como prostituta lhe ensinara que homens como aquele gostavam quando mulheres como ela fingiam querer saber sobre suas capacidades.

— Que habilidades?

Wendell chegou mais perto e roçou a barba do queixo em seu ombro, perto do pescoço. Meredith achou por bem tentar se encolher, como uma garotinha inocente. Mal sabe ele que os minotauros têm queixos bem mais peludos que isso — e ante a esse pensamento, teve que se esforçar para conter os risos. Definitivamente, ele só seria um grande sedutor para garotas tolas e fúteis da corte ou para as camponesas ingênuas que sonhavam com um homem fino e confiante. Mas não para ela, que era amarga e calejada como um veterano de guerra.

— Você não acha melhor ir ao meu camarim? — perguntou.

Mais uma vez, ela quase riu. Porém, precisava de informações. Precisava de gente que mais tarde, poderia lhe dever favores para que ela pudesse sair dali. Precisava de alguém que não suspeitasse que ela queria fugir e que se deixasse levar pela situação — e mais uma vez, Meredith se via tendo de se deitar com um homem para sobreviver. A vida de prostituta parecia cada vez mais longe de acabar.

Entretanto, não houve tempo para a resposta. Os aplausos da plateia no salão principal explodiam enquanto Lindo agradecia pelo carinho que recebia. Alguém disse que em alguns minutos, seria a vez de Wendell. E ele teve um pequeno surto de ansiedade, depois de perceber que logo estaria no palco. Respirou fundo, fez sons bizarros com a boca e jogou os cabelos para trás num movimento extremamente afetado. Quando terminou o ritual, estava confiante como nunca.

— Eu volto logo, querida. — falou, numa voz aveludada. — Sinta o som do Sedução.

— Sedução! Sedução! — gritava a plateia, do outro lado das cortinas. Estavam em polvorosa.

Houve um minúsculo momento de silêncio, enquanto a apresentação ficava ainda mais próxima. A plateia silenciara depois que as luzes mágicas do salão se apagaram, produzindo um momento de tensão. Dentro do Cabaré Monte Parnaso, tudo parecia prestes a explodir de ansiedade porque Wendell Sedução daria um show naquela noite.
Mas não foi o que aconteceu. Porque, naquela noite, o cabaré foi invadido e quase que completamente destruído por causa de uma invasão. Mas esse é um detalhe que merece um pouco mais de atenção e se o leitor não se importa, voltaremos um pouco no tempo para explicar o que aconteceu.

***

Ortius bocejou, ainda ouvindo o som que vinha de dentro, tentando não se lembrar de que estava perdendo uma festa enquanto trabalhava. Fazer a guarda daquele lugar era algo que por vezes, beirava o absurdo, tamanha tranquilidade. Fazia apenas dois anos que ele deixara as legiões em busca de um emprego mais rentável, mas desde que tomara esta decisão, vira pouca ação a serviço daquele cabaré. Não que a noite em Malpetrin fosse pacata — a cidade dos aventureiros nunca parava de verdade —, mas guardar a entrada de um cabaré e expulsar ocasionais bêbados inconvenientes estava longe de ser o ápice da ação.

— Lá dentro está cheio de mulheres, e nós aqui — murmurou para seu companheiro de guarda, Lucius.

Lucius deu de ombros. Diferente dele, era um veterano que há pouco se aposentara e encontrara naquele lugar a oportunidade de ganhar dinheiro com vinte e cinco anos de combate que tivera nas legiões. Em Tapista, todo minotauro devia servir por pelo menos um ano nas legiões ou na marinha, mas muitos estendiam este ano por mais alguns, apenas por causa do salário e da vontade de servir ao reino. Ortius era um desses — servira por dez anos, antes de pedir sua baixa e virar mercenário. Outros, como Lucius, faziam das legiões sua carreira, e passavam lá vinte e cinco anos de sua vida, para depois se aposentarem. Por isso, tinham visões diferentes sobre aquele trabalho: para Ortius, apenas tédio e uma festa cheia de mulheres que lhe era negada; para Lucius, um trabalho digno e seguro, sem muitas surpresas nem risco de vida. Quanto as mulheres, ele não fazia muita questão: tinha três escravas para se divertir. Não precisava de mais do que isso.

— Não se preocupe, Ortius — sorriu o veterano. — Com sorte, a noite de hoje vai nos render alguns bêbados para expulsar e brigas para separar. Você vai ter alguma diversão.

Ortius soltou um riso amargo.

— E eu achando que ser mercenário era mais divertido.

O minotauro não sabia, mas a noite lhe renderia muito mais do que apenas bêbados inconvenientes. Porque do outro lado da rua, um bêbado se aproximava, cambaleando sobre os pés e apoiado no que parecia ser um cajado.

— Senhores — falou o bêbado, quase oculto atrás de uma capa grossa e escura. — É aqui que acontece o show do Wendell Sedução?

Ortius bufou, impaciente. Lucius parecia se divertir.

— Não, amigo. — mentiu o minotauro. — Na verdade, nem sei quem é esse Wendell Sedução. Agora nos dê licença. Precisamos trabalhar.

— O que é isso, amigão? — indagou o bêbado, seu rosto quase escondido por de trás da capa. — Que mal humor, hein. Precisa de uma boa rapariga para lhe dar alguma alegria.

E gargalhou. Ortius já estava sem ânimo para lidar com gente inconveniente, e decidiu que um ou dois sopapos não iriam fazer diferença alguma. Aproximou-se do bêbado e tencionou colocar a mão em seu ombro, mas teve o braço agarrado por uma mão mais veloz de alguém que agora já não parecia tão bêbado assim. Num relance, o minotauro percebeu que a mão que prendia seu braço tinha apenas três dedos.

No segundo seguinte, Ortius estava no chão, costas doloridas pelo impacto. O mundo parecia estar girando enquanto ele se recuperava da surpresa, ainda sem entender o que tinha acontecido. Antes que pudesse reagir, Lucius já tinha sacado a espada e avançado contra o oponente, mas este girava o cajado — que na verdade, era um bastão — e conseguia desarmar o veterano. Com velocidade impressionante, o bêbado que não era bêbado acertou em cheio a têmpora de Lucius, levando-o ao chão.

— Reforços! — gritou Ortius, sentindo a adrenalina do combate. Finalmente. — Homem ferido!

Mas o estranho já fugia. A essa altura, quatro minotauros armados saíam pela entrada principal, enquanto Lucius ainda se levantava, massageando o local onde recebera o golpe. Ortius apontou a direção para onde o agressor fora.

— Vamos por ali! — gritou.

Contudo, não houve tempo para perseguir o fugitivo. Logo, vindo da mesma direção para onde ele fugira, apareceu uma figura pequena metida numa armadura completa e montando um cão enorme branco de manchas castanhas. Ele trazia uma espada consigo, e passou pelo grupo, derrubando mais minotauros e estocando aqui e ali. Não matara ninguém, mas a surpresa desestabilizara a todos.

A pequena criatura montada no cão sumiu na direção oposta, depois de virar na primeira esquina. Dos quatro recém chegados, dois feridos, levados ao chão pelo encontrão.

— Vamos pegar os dois! — falou Ortius, voz enérgica de sargento. — Lucius vai pegar o cachorro com mais dois. O resto vem comigo, pegar aquele filho da puta.

E mesmo sem saber, Ortius mandava seus companheiros em direção à morte.

***

E assim, os seis minotauros se dividiram em direções opostas. O grupo de Lucius correu até virar a primeira esquina e encontrou uma figura esguia vestindo robes tamuranianos e um chapéu triangular, típico daquele povo. O desconhecido ergueu a cabeça, revelando olhos vermelhos que no escuro da noite, ardiam como brasas. Na cintura, duas espadas repousavam nas bainhas, prontas para o combate. O sujeito segurou a maior delas, numa postura marcial.

Houve um pequeno momento de hesitação. Não havia cão nem um cavaleiro pequeno. Apenas aquele guerreiro que os convidava tão abertamente para o combate.

Avançaram.

E morreram, vítimas de um corte limpo e preciso da lâmina de Sousuke Watanabe.

Bela e breve, a vida passa como flor de cerejeira. — recitou, depois limpou o sangue da lâmina da katana e a guardou, num gesto cheio de reverência.

E então, dirigiu-se à entrada, onde poderia terminar o que começara.

— Vamos Pimbo. Temos trabalho a fazer.

O halfling saiu de uma sombra próxima, Bolota trotando animadamente.

***

Kazuki usava sempre o manto porque as pessoas se assustavam com sua aparência. Assim como seu amigo Sousuke, ele também nascera lefou, uma criatura tocada pela Tempestade Rubra que aos poucos devorava Arton. Diferente de seu amigo, que salvo pelos olhos vermelhos, tinha uma aparência comum, ele nascera com as mãos deformadas em apenas três dedos e com uma carapaça grossa que crescia por seu torso que o deixava levemente curvado. Em muitos lugares de Arton, ser um lefou significava ser perseguido sem motivo, já que muita gente decidia descarregar sua raiva em alguém que nascera maculado pela Tormenta.

No entanto, há muito ele aprendera a lidar com aquele tipo de coisa. Hoje, sabia que os olhares que recebia eram mais de medo do que desprezo. Por isso, usava aquilo que era para ter vantagem contra aqueles que, como os minotauros, dominavam e oprimiam por uma simples demonstração de força.

Os minotauros avançaram contra ele numa ruela apertada e escura, espadas em mãos e escudos erguidos para se protegerem de prováveis golpes. Kazuki deixou que se espalhassem pelo terreno, numa tentativa de cerca-lo. Então saltou e acertou um chute na testa de um e a ponta do bastão no nariz de outro. Antes de descer ao chão, desferiu um golpe potente sobre a cabeça do terceiro minotauro, que desabou, inconsciente.

Agora começa a diversão, pensou. Lá dentro, o plano já devia estar quase concluído.

***

Poucos artistas causavam tanto alvoroço quanto Wendell Sedução. Ninguém sabia ao certo o porquê, mas suas músicas pareciam grudar na mente de quem as ouvia, fazendo as pessoas cantarolarem seus versos nos momentos mais banais da vida, espalhando por toda Arton sua arte. Diferente da maioria dos artistas que se apresentava ali, Wendell não era nada decadente. Estava no auge de sua fama, cantando músicas que falavam da vida boêmia, das farras que duravam semanas, dos amores de uma única noite e do ouro tilintando na bolsa. Por isso ele era esperado. Por isso todos gostavam de ouvi-lo.

As luzes do salão se apagaram. Num movimento coordenado e ensaiado repetidas vezes, as luzes de um lustre gigante localizado logo acima do palco se acenderam, iluminando uma pequena área no centro do palco, onde Wendel estava, numa pose dramática. A plateia enlouqueceu apenas com sua visão, como se fosse um evento de proporções cósmicas. Ele sorriu para as pessoas que o assistiam, e fez uma moça qualquer desmaiar de emoção. Os músicos começaram a tocar uma melodia conhecida pelo público, que já aplaudia.

Wendell Sedução estava exultante. Seu momento enfim chegara.

Então, o lustre despencou.

Por muito pouco o artista não foi esmagado, com apenas a chance de se jogar para o lado enquanto a coisa gigante e brilhante caía, quebrando o chão de madeira e levantando poeira. No meio da plateia, guardas minotauros se aproximavam, espadas desembainhadas, prontas para o combate.

Sobre o lustre caído, uma figura esguia e vestida com uma casaca elegante, com cabeça e cauda de gato. Numa mão estava um florete fino e de guarda mão esculpido em padrões intricados. Na outra, uma adaga brilhante. O invasor era todo elegância e presença de palco, e parecia debochar dos guardas que se aproximavam.

Wendell levantou-se e bateu a poeira das roupas. Ajeitou o cabelo que bagunçara na queda, todo revolta.

— Como ousa interromper o meu concerto?

Os minotauros já estavam no palco. O herdeiro do gato saltou com graciosidade para trás, descrevendo uma cambalhota no ar e caindo com classe sobre os pés. Os guardas, vestidos com armaduras pesadas, ficavam lentos perto dele, que se aproveitava disso para cortar e estocar enquanto se esquivava dos golpes que tentavam acerta-lo.

O herdeiro do gato saltou sobre o lustre caído e tomou impulso, indo parar em cima de uma mesa na primeira fileira. Suas botas de viagem quebraram copos e pratos, causando espanto entre os clientes. Ele tomou a mão de uma das mulheres da mesa e lhe deu um beijo.

— Precisava interromper meu combate apenas para dizer que sua beleza é inspiradora. — e saltou novamente, correndo por entre as mesas enquanto fugia dos novos guardas que chegavam. Na mesa, os clientes pareciam não entender se aquilo era real ou parte do espetáculo.

Ao todo, eram dez guardas atrás do maldito gato. Parecia um combate desleal, mas então as janelas da taverna se quebraram, revelando novos invasores. Eram três ao todo: um halfling montado num cão, um samurai e uma figura oculta em um manto escuro e pesado, portando um bastão. Os guardas da taverna não sabiam para que lado correr nem o que fazer, tentando se encontrar no meio do caos que se instalava ali. Nas mesas, os clientes começavam a entender que aquilo não era parte do espetáculo e tentavam sair, todos ao mesmo tempo.

Escondida nas coxias e tentando não ser vista, Meredith achava aquilo tudo a coisa mais linda que já vira na vida.

***

Os quatro cercados, no meio de mesas caídas, porcelana quebrada e guardas cheios de vontade de matar.

— Estamos contra quinze, sem contar os que ficaram lá fora. — disseKazuki.

— Para uma simples taverna, esse lugar tinha uma segurança considerável. — respondeu Fergus.

— Acho que teremos diversão suficiente para as próximas semanas. — comentou Sousuke, preparando sua espada novamente.

— A comida daqui parecia ser tão boa. — Pimbo quase lamentou. Bolota soltou um ganido que parecia concordar com o dono.

Os minotauros avançaram, escudos erguidos. Pimbo partiu primeiro, aproveitando a baixa estatura para atingir as pernas, desprotegidas pelos escudos. Rompeu a linha facilmente, abrindo espaço para Kazuki passar, girando seu bastão e acertando cabeças e braços. Fergus e Sousuke passaram cortando, já derrubando dois dos quinze.
Espalharam-se pelo salão, obrigando os minotauros a abrir mão de sua vantagem numérica. Já era tarde quando perceberam isso: os invasores eram muito bons em combate contra vários oponentes. O halfling tinha um cão que podia morder enquanto corria, Fergus e Kazuki tinham leveza e rapidez que faltava nos oponentes e Sousuke matava sem que seus inimigos percebessem. Era um massacre.

Então, tudo ficou escuro.

Uma risada ecoou pelo salão, ampliada por magia. Os invasores sentiram a vontade de lutar arrefecer e o medo surgir. Alguma coisa passeava entre eles, causando frio na espinha.

— Vocês acharam mesmo que seriam capazes de entrar aqui e saírem ilesos? — indagou a voz. — Acharam mesmo que tudo que havia aqui eram alguns guerreiros? Tolos!

Novamente, uma risada. Fergus tentou atacar um oponente que julgava estar em algum canto, Pimbo olhava para todos os lados enquanto Bolota latia ferozmente e
Sousuke via o mundo em preto e branco, seus olhos se transformando em dois orbes vermelhos que flutuavam no ar. Apenas Kazuki mantinha certa calma, por causa da vida de monge. Mas mesmo ele demonstrava desconforto — a mão de três dedos segurava com força o bastão.

— Vocês se arrependerão de terem invadido os domínios de Bartius. Na verdade, não poderão se arrepender por que daqui não vão—

A frase foi interrompida pelo barulho de algo se quebrando. Súbito, a escuridão se dissipou, revelando um qareen vestindo roupas típicas do Deserto da Perdição caído, inconsciente. Atrás dele, segurando os restos de uma cadeira estraçalhada, estava uma jovem bonita de cabelo escuro e ondulado, vestindo uma túnica típica das mulheres tapistanas.

— Seu erro foi achar que eu nunca seria capaz de um truque ou dois, seu maldito. — disse ela, com a voz cheia de ressentimento. — Você quis que eu fosse prostituta, mas nunca deixei de ser aventureira.

Os quatro invasores ficaram imóveis, incertos sobre o que fazer. Ninguém queria atacar a garota, mas ninguém tinha certeza do que fazer com ela agora que ela incapacitara o qareen que causara aquela escuridão.

— Não somos criminosos — disse Fergus. — Somos aventureiros que lutam contra o império e estávamos numa incursão que visava destruir esta taverna.

A garota deu um meio sorriso.

— Vocês mataram minotauros e me deram a oportunidade de dar o troco neste traidor. Já gostei de vocês. — ela então se aproximou e estendeu a mão. — Meredith Morgstein.

Fergus apertou sua mão e sorriu.

— Fergus. Estes são meus amigos Sousuke, Kazuki e Pimbo.

O cão soltou um latido e balançou a cauda.

— E Bolota, é claro.

Meredith sorriu e encarou os invasores. Pelo menos, não pareciam serem traidores como Sahyd.

— Acho que agora é a hora em que saímos daqui e levamos esse inútil junto. Ele era agente do cara que manda nesse lugar, e tem informações. — ela ergueu a cabeça do qareen pelo rabo de cavalo e o encarou. — Você vai pagar caro pelo que fez.

Por uma coincidência mórbida, os quatro rebeldes — agora cinco — atearam fogo na taverna, que queimou a noite toda como um aviso para aqueles que se aproximavam demais de minotauros: a resistência não estava brincando quando dizia que eles não teriam paz enquanto não libertassem todos aqueles que tinham feito como escravos. Meredith saiu dali levando Sahyd, sentindo-se livre e cheia de vontade de se vingar de cada minotauro que cruzasse seu caminho. Por algum motivo, achava que estava perto de seu irmão, talvez mais do que nunca. Não tinha como saber, pelo menos por enquanto, se aquele pressentimento estava correto.

Mas, acima de tudo, Meredith saiu daquela taverna sentindo-se aventureira de novo. E dessa vez, era verdade.

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