Um dos piores invernos da história recente de Arton assola uma região de pinheiros altos cobertos por neve, onde a tundra se espalha pelo chão por quilômetros antes de esbarrar nas poderosas montanhas das Uivantes a norte. Era o reino de Tollon, sob a autoridade do governador Terius, do Império de Tauron. Entretanto, aquela região era conhecida por Vallah, onde mercantes da capital Vallahim seguiam por uma estrada pavimentada e patrulhada pelos minotauros para comprar peles e outras mercadorias com o povo que fazia escambo com os bárbaros das Uivantes.Vallah
O senhor daquele feudo de Vallah era um ex-legionário chamado Mévius. Não foi preciso muitas perguntas para todos os lenhadores da região chamá-lo de tirano. Suas leis eram absurdas e ele tinha um séquito de clérigos de Tauron e outros soldados a sua disposição. Se Tollon sofreu mais que os demais reinos com a invasão de Tapista, Vallah sofrera mais ainda com a chegada desse senhor.
A arlequina viajava com seu circo itinerante, o Le Grand Cirque Orlando Bloom quando pararam em Vallahim, a capital do reino. Entre uma apresentação e outra, ela notara que o tolloniense comum era bastante fechado e sisudo. Apesar disso, ela conseguia arrancar alguns sorrisos, principalmente das poucas mulheres e crianças na plateia. Seus malabares eram bastante habilidosos. Entretanto, quando se utilizava de alguns truques mágicos inofensivos, como trocar as cores de algumas bolas de couro ou fazer bambolês girarem por sua cintura sem que ela precisasse se mover, o povo suspirava em surpresa. Os homens, barbudos em seus macacões xadrezes franziam o cenho, enquanto as mulheres, as senhoras suas esposas, arregalavam os olhos e deixavam as bocas penderem pela ousadia.Delaila
Miranda, a atual esposa de Orlando comentou, entre uma apresentação de arquelina e outra, que o povo de Tollon achava que lugar de mulher era na cozinha e não admitia conjuração de magia. Ela havia avisado o senhor seu esposo, mas ele não dera trela, de modo que Delaila sequer soube disso. Para constatar a injustiça, ela percebeu que Rogrid, o filho mais velho de Orlando (que não era filho de Miranda) usou magia para por fogo nas calças de seu meio irmão Gob (este sim, filho de Miranda) e as pessoas riram e aplaudiram.
Ao longo de suas apresentações posteriores, Delaila começou a ouvir impropérios de um homem alto, de barba castanha, rosto curtido com cabelos grisalhos nas laterais e testa cheia de rugas. Ninguém fazia nada quanto aquilo e ela foi perdendo um pouco a paciência. Ao final de sua apresentação, saiu de cena para a entrada dos filhos de Orlando para seu ato de comédia. Delaila aproveitou a situação para se esgueirar na plateia, sem sua maquiagem de arlequina, claro. Misturou-se fácil com suas roupas mundanas. Sentou-se próxima do homem e o ouviu comentar como aquele circo estrangeiro era o motivo de tudo de ruim que acontecia em Tollon. Falou que iria denunciar todo mundo para as autoridades táuricas sobre a conjuração de magia praticada pela “puta”.
Delaila moveu-se com rapidez e discrição infinita. Tocou o ombro do homem e o fez olhar para o lado. Ela aproveitou e passou a mão por sua algibeira, trocando-a por outra vazia. Quando o homem deu por si, Delaila já estava em sua pequena tenda-camarim acoplada à tenda principal que era o circo. Havia cinco tibares de ouro. A menina riu sozinha ao perceber que eram seus primeiros cinco tibares de ouro em muitos meses.
A apresentação acabou e Delaila dormia em sua cama, tendo lembranças de casa, principalmente de seu pai. A saudade era constante e batia mais forte quando estava sozinha em sua cama, tentando ser levada pelo sono. E então, ela percebeu um movimento fora de sua tenda. Uma sombra se projetou e a aba foi levantada. Era Rogrid. O rapaz estava com as bochechas rosadas e olhos semicerrados. Estava vestindo uma camisa de algodão manchada. Fedia a rum velho. O rapaz balbuciou coisas como “você é linda”, “quero você pra mim” e não demorou muito para desatar o cinto.
Delaila não era do tipo violento, mas a situação pedia atitudes extremas. Ela se desvencilhou com agilidade de um agarrão e fez Rogrid cair. Antes que ela pudesse sair, o ouvir gemer de dor. Ele havia caído em sua própria adaga. Gritou ao ver o sangue em suas mãos e saiu correndo acusando-a de atacá-lo. Delaila sabia que Orlando era super protetor de seus filhos e sua história não seria ouvida. Num reino como aquele, a justiça provavelmente iria culpá-la também. Por isso, ela não pensou duas vezes: “hora de ir embora”.
Andando furtivamente pelas tendas enquanto algumas lamparinas se acendiam rapidamente como fogo espalhando na palha, Delaila conseguiu chegar à cidade. Mas não sem antes esbarrar com Miranda. A mulher lhe jogou uma bolsa onde os pertences de Delaila estavam. Um estojo de couro com suas peças de travessuras, uma bola de cristal (obviamente falsa, oca e espalhada) e uma pedra lisa do tamanho de um punho. Marcava 21 horas de Jetag 19 sob Luvitas, 1410 CE.
Delaila partiu rapidamente e conseguiu deixar a capital para trás pegando a estrada para norte.Miranda
Vai, menina, fuja!
O céu estava fechado, apenas com a aparição esporádica da lua em escudo para lhe dar um pouco de luz.
Delaila chegou a uma aldeia no amanhecer gelado das 9 horas de Tirag 20 sob Luvitas, 1410 CE. Batia os dentes enquanto caminhava segurando ambos os braços, encolhida. Nenhuma viva alma apareceu para lhe ajudar. Janelas eram fechadas, portas eram batidas. Quando ela tentava falar com alguém, viravam-lhe o rosto e sumiam para dentro de suas casas. Uma moça retirava o leite de uma vaca a viu. Tinha cabelos ruivos encaracolados e sardas tímidas perto de seus grandes olhos verdes. Entretanto, ela falou sobre um lugar onde ela poderia se aquecer e comer alguma coisa. E apontou para as montanhas.
Ela seguiu por mais algumas horas até a aldeia desaparecer atrás de si. Andando sob uma neblina rasteira, Delaila sentia câimbras. Quando parecia que ia ceder, acabou encontrando algo. O chão estava mais duro, as tundras mais abundantes. Viu uma cerca e uma trilha rudimentar paralela. Seguiu lentamente mais à frente e conseguiu ver que a cerca mantinham lápides antigas. Ela já tinha ouvido falar desse lugar, há muito tempo, quando lia alguns livros antigos com o seu pai. Aquele era o famoso Cemitério dos Colonos, onde os primeiros dissidentes da famosa caravana de Cyrandur Wallas, herói de Petrynia, enterraram seus primeiros mortos.
Apesar da neblina rasteira, Delaila conseguiu divisar uma construção de pedra com pilares antigos, com algumas rachaduras. Uma escadaria curta levava até uma porta.
Desde o Tratado da Semente feito pelos homens da cidade de Follen com os druidas do Bosque de Allihanna não havia tantos não-druidas naquela imensidão florestal, cheia de pinheiros para se perder de vista. Eles estavam em uma grande clareira, os civilizados e os Druidas de Tollon.Bestius
Como de costume, Bestius não se importava com tratados ou modos civilizados, por isso, pouco se importava com os humanos de Follen. Ele havia saído de sua “zona de conforto” há poucos dias, determinado a seguir os passos de seu irmão e conhecer mais do mundo e suas maravilhas. Além de buscar poder para, enfim, enfrentar as ameaças aberrantes que sequer imaginava como se pareciam.
Bestius havia chegado há pouco no Bosque de Allihanna e fora avistado por druidas do círculo da região. Ele sabia apenas rudimentarmente que havia uma divisão de “tipos” de druidas devotos da Mãe. Os organizados em círculos que vigiavam a ação dos civilizados sobre a natureza para lhes corrigir quando necessário e tolher abusos; e os totalmente isolados da civilização que viviam em comunhão com os animais (tornando-se muitas vezes animais mesmo) como ele. Mesmo encontrando-os com um sorriso (afinal, eram irmãos druidas!), Bestius percebeu que era rejeitado. Bocas tortas, cenhos franzidos, olhos rolando. O metamorfo entendeu que ali não era bem quisto. Não entendia muito bem o por quê.
Conseguiu, entretanto, que um jovem falasse com ele e explicasse a presença de tantos civilizados no Bosque de Allihanna.
Bestius entendia mais ou menos o que isso significava. Franus, seu irmão, lhe alertava do mundo lá fora. “As pessoas do mundo civilizado desprezam a harmonia com a Mãe. Eles querem exaurir os recursos naturais para produzir seu próprio meio de destruição. Veja, eles modificam o que a natureza já dá para fazer algo que os agrade.”Jovem druida
Sãos os madeireiros. Vieram pela madeira.
Bestius percebeu isso. Os madeireiros queriam mais madeira, mais do que lhes era devido da cota estabelecida no Tratado da Semente, séculos atrás. O meio-dríade ficou próximo a um grupo de druidas que debatiam com os civilizados e pôde ouvir o teor da conversa. Eles estavam sendo pressionados pelos minotauros (os senhores daquelas terras entre o Rio Kodai e o Rio Panteão) para produzir mais casas, mais cidades, mais móveis, mais tudo. Desde a chegada dos novos senhores, os civilizados (que se autoproclamavam “tollonienses” ainda que isso não tivesse nenhum significado para Bestius) mudaram muito seus hábitos. Tratados antigos como o da Semente teriam que ser revistos e os Druidas de Tollon não pareciam satisfeitos com aquilo.
Bestius prestou atenção na argumentação de ambos, compreendendo o que podia e ponderava ele mesmo o que era mais justo a se fazer. Porém, em sua visão periférica, o metamorfo percebeu uma movimentação estranha na clareira. Pulou a tempo de salvar a vida do jovem druida que o tratou como gentileza. Uma flecha cravou o chão. Súbito, uma saraivada de flechas escureceu a clareira. Muitos caçadores atiravam dos antigos pinheiros. Vestindo suas roupas verdes com folhas camufladas, eles desceram da árvore e sacaram suas espadas. Os Druidas de Tollon que estavam ali presentes não estavam preparados para isso. Seus irmãos animais não estavam ali. Suas armas haviam sido deixadas debaixo de um grande pinheiro, centenas de metros atrás. Era uma das condições para a reunião naquele dia com os madeireiros.
A traição fez Bestius enfurecer-se e tentar atacar os caçadores e os madeireiros. Conseguiu matar dois com suas garras transformadas. Porém, o jovem de antes tocou-lhe o ombro.
Jovem druida
Vamos embora, Bestius. Eu tenho que te mostrar uma coisa.
Bestius não entendia como ele sabia seu nome, mas entendia o chamado em seu coração. Aquele rapaz não era um simples druida em aprendizado.
Em meio ao caos da luta, ele foi embora com o rapaz. Havia passado horas quando Bestius decidiu perguntar para onde estavam indo. O rapaz não respondeu. Meia hora depois o meio-dríade perguntou novamente e novamente foi ignorado. Bestius perdeu a paciência e o puxou pelo ombro. O rapaz se virou transformando-se em um enxame de insetos voadores e desapareceu.
Apesar da falta de respostas, Bestius percebeu onde estava. Frente a uma caverna ele sentia seu coração palpitar. Não precisava de livros ou de ninguém para lhe falar que aquele lugar era sagrado. Seus passos foram guiados para dentro e ele pôde perceber um calor acolhedor, uma sensação de proteção e bondade. Bestius viu no centro da caverna escura um objeto brilhante. Uma esfera branca luminosa sobre um altar de madeira esculpida. Da penumbra, uma mulher apareceu. Ele sabia que era mulher pelo corpo humanoide e suas formas, que vestiam uma túnica branca simples. Sua cabeça era de uma corça.
Antes que Bestius pudesse perguntar alguma coisa, a mulher desvaneceu-se no ar como se nunca estivesse estado ali. A esfera brilhou intensamente até ele precisar usar os braços para proteger os olhos. Quando passou a sensação de cegueira, ele se viu com muito frio, muito mesmo, em uma trilha rudimentar com uma neblina rasteira ocultando o chão e um pouco do horizonte. Pelo intenso frio, supôs estar bem a norte, perto das montanhas de gelo.Mãe
Meu filho querido, você foi o escolhido para proteger algo muito precioso. Siga a norte e você encontrará o seu destino.
Seguindo a pequena trilha, ele viu uma cerca de madeira e arame farpado (coisas que os civilizados adoravam por para demarcar terras e chama-las de suas) e, do outro lado, várias pedras brancas, cinzas de todos os formatos e tamanhos, postas lado a lado a perder a vista.
Intrigado, ele seguiu a norte e encontrou uma construção feita pelo civilizado. Duas pedras cumpridas como árvore sustentavam o que parecia ser uma caverna esculpida por ferramentas. Havia degraus também de pedra esculpida e, sobre eles, uma mulher cambaleava.
O céu resplandecia e ao seu redor, Ganimedes estava deitado em um gramado confortável saboreando a mais vermelha maçã de sua vida. Ouvia o som de um riacho ali próximo que amenizava o clima quente.Ganimedes
Ou era isso seu sonho.
O rapaz estava com a cabeça encostada entre duas barras de ferro, dentro de uma jaula de animais. Ali ele havia reduzido a um animal, destituído de sua humanidade. Estava um trapo humano. Cabelos ensebados grudando em sua cabeça. Olheiras pesadas e corpo magro. Ganimedes lembra do ultimo dia ensolarado que viu, coincidentemente o seu último dia de liberdade.
Há um pouco mais de um mês ao sair de Valkaria, Ganimedes era só esperança e empolgação. Seria um aventureiro, se tornaria famoso, teria riquezas e reconhecimento. Voltaria para Valkaria triunfante após conquistar tudo que queria. Entretanto, a realidade não foi a que ele esperava. Após vaguear pelas pradarias por dias, encontrou um vilarejo simplório onde pôde comer e beber por poucos tibares.
Uma jovem e linda mulher o abordou no balcão. Tinha orelhas alongadas, olhos verdes vibrantes. Sua roupa leve branca com partes de couro e um florete preso à cintura indicavam que era aventureira.
Ganimedes queria, mas ficou um pouco desconfiado, olhando de soslaio e percebendo ninguém com características de viajante naquela pequena taverna. Perguntando sobre isso, a elfa mostrou um largo sorriso.Elfa
Olá, bonitão. Gostaria de se unir ao meu grupo de aventureiros?
Ganimedes se apresentou e ponderou sobre aquilo. Disse que queria conhecer o resto do bando primeiro antes de aceitar qualquer coisa. Ellyane assentiu ainda com um largo sorriso. Tendo esse motivo deixado de lado, Ellyane e Ganimedes tornaram-se mais “íntimos”. Conversaram sobre quem eram e o jovem arqueiro entendeu que ela era uma espadachim com uma triste história. Havia se separado de sua irmã tão logo fugiram da queda de Lenórienn e até hoje não a encontrou. Ganimedes notou o seu semblante entristecer-se como uma flor murcha. A mão dela pousou sobre a de Ganimedes.Ellyane
Eles estão vindo de Valkaria agora mesmo, moço. Chegarão amanhã de manhã. A propósito, meu nome é Ellyane.
O coração do jovem arqueiro palpitou. Ele sentiu seu rosto esquentar e quando deu por si estava aceitando. Não demorou muito para sua mão impedir a queda de uma gota de lágrima do rosto de Ellyane.Ellyane
Eu farei tudo pela minha irmã. Você pode me ajudar?
“Ellyane”. O nome vinha amargo em seus lábios rachados. A jaula subitamente parou de andar sobre as rodas naquela estrada pavimentada. Ele viu o que vira repetidamente há quase um mês. O minotauro chamado Alvinius de penugem branca e córneos de bisão descia da carruagem e sacava seu chicote e passeava entre as jaulas presas umas as outras. Ganimedes sabia que não tinha nada a temer, pois não tinha feito nada de errado. Suas costas cheias de cortes infeccionados haviam feito desistir de tentar fugir logo na primeira semana. Mas alguém sempre tentava. Ele ouvia os berros de outras pessoas, mas não conseguia ver. O deslocamento de ar provocado pelas chicotadas lhe causava calafrios. Suas cicatrizes ardiam.
Ele fechou os olhos e viu Ellyane. Seu corpo nu era esbelto, escultural. Tudo o que um homem como ele gostaria de ter em sua vida. A cama de palha foi o seu ninho e Ganimedes pensou que havia começado com o pé direito a sua jornada de aventureiro.
Acordou naquela mesma noite com duas figuras enormes sobre ele. Tentou se debater, mas logo seus finos braços foram dominados. Um terceiro agarrou-lhe as pernas e as amarrou firme. Após ter os braços amarrados também, ele sentiu o cheiro de pelos, o bafo asqueroso. A lamparina fora acesa por um quarto homem. Eram todos minotauros. Mas como era possível? Estavam ainda em Deheon! O Reino Capital! O centro do Reinado!
O reino que dobrou o joelho para o Império.
Arrastado, Ganimedes pensou em gritar e gritou. Mas apenas atraiu olhares curiosos de pessoas que tinham muito a perder. Desceu as escadas tentando se debater inutilmente, sendo assistidos pelo dono da taverna nitidamente cabisbaixo. Ele viu Ellyane com semblante sério na porta da estalagem.
Dessa vez não havia tom de súplica, mas uma firmeza na voz irreconhecível. A jovial e alegre espadachim agora era sua algoz. Se havia remorso em sua alma, Ganimedes nunca soube.Ellyane
Eu farei tudo pela minha irmã.
As lembranças desnuviaram quando ele começou a sentir frio. Muito frio. Ouviu os minotauros comentarem sobre como aquele inverno estava sendo o pior que já viram e praguejaram ter que trabalhar por Tollon, o Reino da Madeira. Ganimedes sempre ouvia a conversa de Alvinius e seus homens, ditas em Valkar. Aparentemente, eles treinavam para falar a língua dos humanos para poder galgar posições de destaque e chefia no exército. Queriam parar de capturar escravos, viver atrás de fujões e ter que fazer outras coisas mais sujas.
Certo dia, o arqueiro (ou seria ex-arqueiro?) viu algo diferente de sua rotina. Após pararem pela fria manhã, Alvinius conversou com outras pessoas. Pela voz, eram humanos, mas ele não conseguia vê-los direito por causa do capuz.
Encapuzado
Quero somente dois. E só porque precisamos mesmo.
Ganimedes foi um dos dois escolhidos para trabalharem. Estava entre humanos, mas havia grilhões em suas mãos e nas pernas. Ele olhava incrédulo para aqueles homens, revoltado.Alvinius
Claro, garoto, claro. Logo você verá que usar escravos para esse tipo de trabalho é muito mais barato que pagar lenhadores teimosos.
Então, ele ouviu com nostalgia um assoviar característico. Uma flecha cravou no pescoço do encapuzado que lidava com Alvinius. Em questão de segundos silhuetas se formaram entre as árvores. Era humanoides e outros nem tanto. Alvinius gritou ordens em táurico e seus homens apareceram com escudos e lanças. Os encapuzados tentaram correr para direções diversas, mas eram alvejados com facilidade. E então, as silhuetas ganharam forma. Eram homens e mulheres com pinturas, folhas e galhos pelo corpo. Muitos usavam peles e quase todos tinham algum animal andando perto. Lobos, panteras, ursos eram os mais comuns.
Aconteceu um grande ataque. Os druidas se lançavam primeiro contra os homens encapuzados e depois atacavam os minotauros. Ganimedes conseguiu se arrastar pelo chão e procurar abrigo perto da carruagem. Tentou tirar os grilhões, mas não conseguiu. Um minotauro caiu morto ao seu lado com o rosto chamuscado. O jovem valkariano encontrou chaves e, graças à Valkaria, eram de seus grilhões. Libertou-se e correu para longe.
Dias depois de andanças, Ganimedes parecia que morreria congelado, com a neve que caia naquele lugar absurdo. Mas encontrou uma pequena caverna no meio daquela imensidão florestal. Dentro, viu resquícios de fogueira e imaginou se alguém estava ali. Não havia alguém vivo, pelo menos. Encontrou um homem morto a golpes de espadada. Vasculhou por algo interessante e viu uma mochila com bons pertences. Aparentemente ele era um aventureiro que morrera tentando curar inutilmente suas feridas, a julgar pelo cheiro fétido da pasta dos bálsamos. Felizmente, havia outros dois e Ganimedes pôde se tratar, deixando um para futuras ocasiões. Havia também um arco simples e três aljavas. Aparentemente Valkaria havia posto aqueles pertences como recompensa por seus esforços...
Depois de um dia descansando, o jovem arqueiro se equipou e partiu para norte, tentando se guiar pelas árvores e pelo som dos animais. Não demorou muito para notar que estava próximo das Montanhas Uivantes. O paredão de montanhas brancas nos confins do horizonte não deixava enganar.
Ganimedes seguiu com frio em busca de abrigo e encontrou uma trilha muito antiga. Não conseguia ver os rastros dali porque havia uma neblina baixa bem densa. Mas notou estar margeando um cemitério cercado. Ao final da trilha, ele ouviu sons de passos. Pegou uma flecha e abaixou-se para tentar usar a neblina a seu favor. Viu um homem alto e forte indo em direção ao que parecia ser um templo. Nas escadas de tal construção havia uma mulher cambaleante. Súbito, viu uma mulher passar, cheia de casaco, ao seu lado. Ela aparentemente não o viu.
Deixar seu filho aos cuidados das mulheres do monastério de Lena provocou uma mistura de emoções na recém-admitida na ordem. Adna não entendia bem o processo que culminou o nascimento de seu filho, pois aprendera nas liturgias sagradas que havia um ritual específico onde a própria Deusa da Vida engravidava suas noviças a fim de torná-las suas sacerdotisas. Não foi o que acontecera consigo.Adnaerys
Ao longo de seus estudos no caminho da Vida, Adna viajou bastante por muitos monastérios a fim de adquirir sabedoria e conhecimento. Em Arton, o clero de Lena era um dos mais populares. Todos precisavam de suas bênçãos. No final de seu treinamento, Adna estava em Vallahim, a capital de Tollon, o Reino da Madeira. A despeito da situação política complicada que passavam, os tollonienses em geral eram muito receptivos à Lena e iam às missas em todos os Valags, dias de descanso.
Depois que partira do monastério original em Nova Ghondriann, Adna não passava um dia sequer sem pensar em seu garoto de quatro anos com os cabelos e olhos negros. Tinha seu tom de pele e em nada lembrava o ser celestial que visitou sua cama na noite em que sua vida mudou para sempre. Apesar da particularidade de sua gravidez, ela foi acolhida pelo monastério e aprendeu a doutrina clerical.
Em Vallahim, mesmo sob a supervisão de Basilius, clérigo de Tauron responsável central pela fé do Deus da Força em Tollon e braço direito do próprio governador Terius, Adna não era importunada e sua fé podia ser professada sem muitas intervenções. A única limitação era a proibição de pregar nas ruas sem aviso prévio às autoridades e da liberação documentada. Era difícil muitas vezes conseguir essa liberação, mas Adna sempre auxiliava a chefia da Casa de Lena na diplomacia. A matrona Gunilda era uma mulher tão determinada quanto doce. Alguns a consideravam teimosa ou louca por bater de frente sempre que podia com Basilius.
Um dia, após uma missa celebrada pela própria Adna, Gunilda a chamou em seus aposentos. Sentada à sua cama, ela convidou a samaritana para sentar ao seu lado.
Ela mira a janela e Adna pôde ver o cair dos flocos de neve.Gunilda
Tenho recebido muitos elogios dos fiéis por suas palavras. Suas missas têm sido auspiciosas e têm acalentado o coração embrutecido dos lenhadores. Fico muito satisfeita com isso, minha querida.
Gunilda se levanta da cama e a abraça. Depois, a olha nos olhos.Gunilda
Entretanto, minha querida, não foi bem este o destino que Lena quis para uma de suas filhas mais especiais. Não. Você foi escolhida por um anjo e tem muito a que ajudar as pessoas pelo mundo. Você deverá seguir seu caminho levando a palavra da Vida para os corações mais duros.
Gunilda agora pegava uma taça e enchia com vinho. Oferecia para Adna.Gunilda
Fui solicitada por Basilius para uma... missão. Será bom para você como sua primeira tarefa oficial pela igreja. Nos dará um favor necessário para conseguirmos mais autorizações.
Adna sabia o quão importante essa missão seria para Gunilda e para a igreja de Lena, por isso, partiu naquela mesma manhã com seu casaco de frio mais pesado, pois aquele era um dos invernos mais frios da história do reino e uma tempestade terrível não tardaria em chegar.Gunilda
Sabe como são essas coisas políticas, não é? Temos que dar para receber. Enfim, a missão nada mais é que uma investigação simples. Você terá que seguir a norte, até os domínios do senhor Mévius, na região de Vallah. Não é muito longe, não se preocupe. Existe um cemitério, um dos mais famosos da região das montanhas, o chamado Cemitério dos Colonos. Acreditamos, eu e Basilius, que haja um templo ali e gostaríamos de saber quem está controlando o local. Por mais que os minotauros se gabem de sua força e coragem, aparentemente têm medo de um simples cemitério...
Após algum tempo vagando pela estrada, Adna chegou à Vallah sem maiores dificuldades e foi recebida por um minotauro, um soldado a mando de Mévius.
Rude, mas não causou problemas. Ela seguiu pela região onde a tundra começava a dar lugar ao terreno rochoso. Adna pegou uma vaga trilha e só conseguiu se guiar porque havia uma cerca que contornava o cemitério, pois o chão estava coberto por neblina. Puxando o casaco para perto de si, ela viu um homem alto, robusto com cabelos e barba castanhos muito claros. No sopé do templo à frente, havia uma mulher cambaleante.Soldado
O senhor Mévius está ocupado no momento, samaritana. Siga seu caminho.
Ainda hoje Aslam tem pesadelos envolvendo aquela maldita bruxa. Quando via sua cara horrenda correndo pelas paredes despejando sua nojenta saliva corrosiva de suas quelíceras aberrantes, Aslam tinha certeza que o dia seria uma droga. Acordava com dores de cabeça, corpo ainda cansado. Felizmente, tais dias não eram tão comuns fazia muitos meses, quando pegou um navio para navegar pelo Rio dos Deuses.Aslam
Sua intenção, à priori, era chegar à Yuden para se juntar à igreja de Keenn do reino. Mas logo que entrou no Rio Iorvaen que margeava o oeste do Exército com uma Nação, percebeu que não seria bem visto. “Mas sou um devoto, um sacerdote da guerra, racistas imbecis!” tentava bradar em alguns momentos, mas não houve jeito. A rejeição da população aonde ia e os constantes desafios dos campesinos belicosos, além da ameaça das autoridades locais em prendê-lo por motivo nenhum fizeram Aslam desistir de ficar naquela terra de humanos burros.
Aslam então decidiu atravessar o outro lado do rio, para Zakharov, o Reino das Armas. Sua alcunha era promissora, pensava. Conversou com alguns tripulantes do navio sobre o reino e descobriu que havia poucos anões no reino e isso o deixou intrigado. O que acontecia? Anões e armas estavam intimamente ligados e até o próprio nome Zakharov era de um deus menor do povo anão e Zakharin (nome da capital do reino) era o nome de sua arma favorita.
Após viajar para a capital do reino, ele descobriu rapidamente o que aconteceu. Há muitos anos os anões e estes partiram para sempre do reino, acabando com os acordos comerciais entre Doherimm e Zakharov. Aslam não era exatamente apegado às tradições anãs, pois não ligava de possuir pouca barba e era devoto de um deus minoritário entre os seus. Seus pais, inclusive, preferiram abandonar sua nação para professar sua fé na superfície. Apesar disso, ele sabia que seu povo – ainda que teimoso – não tomaria uma atitude dessas sem um bom motivo. Por isso, ele ficou ressabiado com os humanos zakharovianos.
Poucos dias na capital do reino ele descobriu alguns templos de Khalmyr, Keenn e Valkaria. Aparentemente o povo não via o Deus da Guerra como um vilão como se via em outras partes de Arton. Ele era responsável pela proteção na guerra quando era necessária. Mas a visão de Khalmyr responsável pela “guerra justa” era predominante ali. Aslam não tinha paciência para aceitar que haja o conceito de “justiça” na guerra. A guerra bastava em si, era o que movia as pessoas, o que as desenvolvia, o que lhes dava significado. O conflito puro e simples. Justo ou injusto, não eram conceitos relevantes e, pior, sobrepesavam o próprio significado da guerra pura.
Aslam encontrou bastante facilidade para falar o que pensava na igreja de Keenn de Zakharin. Não era acostumado a isso, pois preferia a parte belicosa da função de sacerdote, mas sabia fazer uma ou outra pregação. Ministrou duas missas, mas não se tornou popular. O bispo até concordava com sua visão, mas eles precisavam entrar nas mentes do povo e manter sua fé. E, para isso, era preciso falar coisas que fizessem sentido na cabeça deles.
A queda de Khalmyr em favor de Tauron como líder do Panteão, ocorrida há pouco mais de cinco anos estava causando efeitos. As pessoas diminuíam a frequência na igreja de Khalmyr e acabavam enchendo as missas de Valkaria e Keenn, pois Tauron não era bem visto no Reinado depois das Guerras Táuricas.
O jovem anão percebeu que seu tempo ali, embora não em vão, não foi tão eficaz quanto imaginava. Por isso, partiu para sudeste. Estava curioso quanto aos devotos de Tauron e desejava, sobretudo, batalhar contra eles e testar sua força, principalmente para provar que Keenn deveria ser o verdadeiro líder do Panteão, não Tauron. Afinal, Arton precisava se unir para a maior de todas as guerras: contra a Tormenta.
O cruzado viajou até Gorendill, uma simpática cidade de Deheon, o Reino-Capital do Reinado. A cidade era próspera e pacífica demais. Nesses dias de calmaria Aslam sentia-se pecador. Não se furtou em provocar uma briga de bar apenas para aquecer os punhos e foi embora na calada da noite, sentindo a emoção no sangue. Porém, precisava de mais que isso.
Ele encontrou alguns bandidos de beira de estrada e conseguiu dar cabo deles cortando braços e pernas, mas evitando matar, para dar a eles uma chance de se tornarem vingativos. Ensinou bem, pois uma semana depois foi atacado pelos primos dos bandidos. Estes, entretanto, teve que matar.
Aslam percebeu que as estradas começaram a ser pavimentadas e viu quase semanalmente tropas de minotauros rondando a região lhe fazendo perguntas. Eram, de modo geral, educados, por isso não havia uma clara oportunidade de combate. Alguns inclusive pediam por uma bênção do Deus da Guerra, praticamente segunda religião dos soldados. Surpreso com tal recepção, Aslam seguiu seu caminho até quando tudo começou a ficar frio, muito frio.
Por algum motivo, ele começou a ver montanhas geladas e sentiu que começava a se perder. Se sua memória não falhava, aquela região deveria ser próxima das Montanhas Uivantes e ele não queria ir pra lá. Tentou pegar outra rota pelo terreno rochoso até encontrar um pouco de tundra. Seguiu até começar a ver uma neblina densa, mas baixa, até altura de sua cintura. Encontrou as costas de um templo antigo. Ele reconheceu logo: “trabalho anão”. Circulando o templo, ele viu uma garota cambaleando, subindo as escadas. Ela não parecia bem. Atrás dela havia um homem alto, loiro e barbudo. Vestia trapos simples cobrindo apenas a sua masculinidade. “Como aquele humano não sente o frio?”.
Delaila, Bestius, Ganimedes, Adnaerys, Aslam
Delaila está nas escadas, cambaleante pelo frio e cansaço que sente após andar por muito tempo sem proteção necessária. Ela não vê ou ouve ninguém.Templo desconhecido
Bestius está próximo a ela, mas não vê ninguém a não ser a mulher cambaleante, aparentemente, precisando de ajuda.
Ganimedes está furtivo, escondido na neblina com uma flecha preparada. Ele vê a mulher cambaleante e o homem forte de poucas roupas próximo a ela. Do seu lado, mas sem que ela o notasse, está outra mulher coberta por casaco.
Adna vê a mulher cambaleante e o homem forte à sua frente. Não se atentou ao jovem arqueiro agachado do seu lado, encoberto pela neblina.
Aslam consegue ver a mulher cambaleante e o homem forte, mas não enxerga muito mais longe que isso devido às condições climáticas. Ninguém parece vê-lo.