O Começo
Os super-heróis surgiram nos Estados Unidos na virada dos anos 30/40, mas o nosso primeiro super-herói existiu de forma muito discreta em seu tempo – e por isso seria pouco lembrado. O herói alado conhecido como
Carcará Vermelho[1] passou batido simplesmente por ter surgido fora do eixo Rio-São Paulo (mais especificamente, Goiânia). Nos dias de hoje sua história acabou por ser levantada: ele era o príncipe destronado de um império alienígena, oculto na Terra e lutando contra os invasores em meados dos anos quarenta. Como a invasão fosse debelada, ele eventualmente retornaria a seu planeta e pouco se sabe dele. Mas o primeiro super-herói conhecido publicamente em nosso país seria o
Campeão Primeiro[2], em 1954. O Campeão foi um garoto abduzido por alienígenas e geneticamente modificado e treinado para servir como um general colaboracionista em nome dos invasores. No entanto, ele consegue se libertar da influência de seus mestres e se volta contra eles, retornando e protegendo a Terra, estabelecendo-se na capital do país (à época, o Rio de Janeiro).
Ele não seria o único. No começo dos anos 60, o tenente Alberico Boury da Força Aérea estava patrulhando a fronteira quando encontrou os escombros do que parecia ser outra aeronave. Na realidade, era um disco voador, com um cadáver alienígena que parecia inacreditavelmente vestir uma sombra viva. Boury tocou nas pulseiras desse alienígena e fez o traje se recolher, fazendo o alienígena se desmanchar a seus olhos. Rapidamente o oficial percebeu que eram as pulseiras que acionavam e recolhiam um traje de combate com poderes. E ele comunicou isso a seu superior imediato. A verdade é que seu superior era ligado ao IPES – o Instituto de Pesquisas e Estudos Sociais, que na verdade se tornaria o berço conspiratório do Golpe de 1964. E em um cenário com super-heróis como o Campeão Primeiro ou o misterioso Aamo, o Espírito da Lua[3] – que sempre foi arredio e muitas vezes se voltou contra as autoridades, pareceu interessante ter um super-herói a serviço de seus interesses. Assim nasceu o Luz Negra[4].
O Golpe de 1964
Entre 1954 e 1964, tivemos um número razoável de super-heróis – em sua maioria aventureiros mascarados, sem grandes poderes. Alguns deles se tornaram polêmicos como Aamo – de quem hoje se sabe que era um indianista, deparando-se com o fato que a tribo que ele ia estudar estava vivendo mais e mais como o homem branco (e isso destruiria a cultura pelo qual ele era apaixonado e queria estudar); por isso, criou um traje refrigerado para servir de protetor dos índios, e meio que servir de um item de controle social para evitar que eles se desviassem da cultura de seu povo. Outro herói digno de nota era Malyr, o Mistério Vivo[5]; ele é um alien que ficou preso no brasil graças a um acidente e não tinha um corpo em termos humanos; é um ser basicamente energético que pode converter energia em matéria e com isso criar um corpo sintético com o qual interage conosco. Sua nave está bem escondida e até onde se sabe, pela diferença de recursos envolvidos, ele nunca pôde consertá-la para voltar para casa. Outro herói atípico foi Otep[6], um estudioso de misticismo egípcio que trouxe de volta ao mundo os poderes dos antigos deuses do Egito – mas quanto mais os usava, mais de distanciava da humanidade. Por fim havia Seláquio, o Homem-Peixe [7] – um peixe mutante criado por vazamentos radioativos de submarinos nucleares americanos em meio ao oceano atlântico, em território Brasileiro. Ele tentava alertar para o que iria acontecer, mas ninguém acreditaria em uma criatura-peixe...
Em meio a isso, Luz Negra fazia seu papel de herói em público, e era talvez o único de todos a ter apoio irrestrito da grande imprensa, fazendo parte secretamente da Operação Condor –
http://pt.wikipedia.org/wiki/Operação_Condor – participando das reuniões do IPES. No fim, quando ocorreu o Golpe de 1964, Luz Negra convocou todos os heróis importantes e deixou claro: na fronteira dos limites territoriais brasileiros do Oceano, estava uma esquadra imensa de Marines, prontos para o caso dos militares brasileiros fracassarem no golpe. Se os Heróis interferissem contra os militares rebelados, ou atacassem a esquadra americana, o Brasil seria invadido por hordas de supers americanos "contra o comunismo". Os heróis brasileiros seriam vistos como vilões para o mundo, com a ajuda da imprensa e do cinema. E seria impossível proteger a vida de civis. Milhares morreriam.
A maior parte dos heróis penduraram a capa, menos Aamo. Isso teria consequências trágicas na década seguinte. O Campeão Primeiro se aposentou, já tendo casado (a princípio a contragosto) com a filha de um coronel aposentado de polícia que morava no Grajaú (ele tinha mais de trinta anos quando isso aconteceu e ela era uma normalista de quinze anos; mas mesmo ele sendo invulnerável a tiros de espingarda, sua identidade secreta em tese não tinha. Teve sete filhos entre 1969 e 1981). Seláquio voltou ao oceano, Malyr desapareceu e outros heróis menores daquele tempo ou desistiram, ou tentaram agir assim mesmo – sendo presos e mortos pela ditadura ou recuando após a primeira pressão realmente perigosa. Otep, por sua vez, não pareceu encarar isso como o fim do mundo; parecia mais interessado em prosseguir em um caminho de evolução espiritual do que se preocupar com o mundo dos homens. Dos heróis mais antigos, Aamo teve o destino mais trágico, sendo traído pelas tribos que estavam sob seu comando – e morrendo sob tortura dos militares em 1973.
Isso não impediu o surgimento de outros heróis. Na virada dos anos 60 para os 70, certamente o mais proeminente foi Marcial [8], um jovem mascarado que cruzava o país com sua moto e enfrentava de grandes coronéis a madeireiras ilegais. Ele dominava a técnica misteriosa conhecida como Shian Kai, e se considerava seguro por estar sempre em movimento pelo país, chegando a treinar sua noiva e a tornando sua sidekick. No entanto, quando ela engravidou em 1974, ambos foram capturados e um militar faria nela o aborto com uso de insturmentos de tortura, na sua frente. Marcial o matou antes que ele fizesse isso, e fugiu com ela para o Uruguai, só retornando anos após a lei da anistia. Mas sua carreira como herói mascarado chegou ao fim.
Outro herói foi o Guitarra[7], um jovem mascarado que passou a agir entre 1969 e 1971 com uma guitarra cheia de armas especiais e ataques sonoros, desapareceu misteriosamente. Nos anos oitenta, se descobriu que na verdade ele era Carlos Augusto, um cantor da Jovem Guarda que combatia o crime por diversão. Mas por agir como um super-herói, foi capturado, pesadamente interrogado e torturado – permanecendo na cadeia por três anos. Os traumas da tortura tiveram efeitos psicológicos graves, e nos anos oitenta sua família foi à público para expôr o que foi feito com o rapaz. Até hoje, o torturador – que atendia pelo codinome de Dr. Alicate – permanece livre, morando em Higienópolis, bairro de São Paulo, escrevendo colunas para grandes jornais da cidade.
A Redemocratização e a Década Perdida
É de se perguntar porque os super-heróis não voltaram com tudo durante os anos da redemocratização. A verdade é que a ressaca do patriotismo causada pelos anos pós-ditadura, os danos feitos pelos militares à uma incipiente comunidade heroica e o desencanto causado pelo Plano Cruzado – que levantou a esperança da população e depois puxou seu tapete, quebrando as expectativas gerais, afundando ainda mais o país e destruindo a auto-estima de uma geração – criaram uma sensação de que o Brasil não
merecia ser protegido ou defendido. Para piorar, o primeiro super brasileiro a manifestar publicamente poderes em público – o jovem Cléverson Cleiton, usou os poderes para sair do país e se juntar a um grupo americano, sediado em Miami, sob o codinome de
Firecracker. Nunca houve alguém tão desprezado quanto ele, que da última vez que pisou no Brasil (em 1993), mandou uma banana para o povo em público.
Mas Firecracker teve um efeito importante: fazer com que o legado dos antigos heróis voltassem a publico, revoltados com o exemplo dessa figura. Filhos e netos do Campeão Primeiro entraram na ativa, querendo transmitir o legado de seu pai.
Os heróis voltariam ao Brasil, finalmente.
A Grande Divisão
A primeira década após o retorno dos supers no Brasil foi um tanto incerta, povoada por legados de heróis antigos que retornaram. A mídia martelava a pergunta: super-heróis eram realmente importantes no Brasil? Se surgisse uma ameaça planetária, grupos americanos salvariam o mundo. Os maiores jornais do país os tratavam entre a excentricidade e a piada. Foi quando no início da década de 2000, o Marcial original voltou a mídia. Ele expôs o que quase aconteceu a sua esposa – somando-se às vozes da família do Guitarra e de outros heróis que pereceram ou foram torturados durante a Ditadura. Ao ver que não se fariam ouvir, ele decidiu falar à juventude – da necessidade de se fazer pelas próprias mãos um país melhor ao invés de reclamar da vida ou fazer o que os outros façam. Isso culminou na escolha de um novo discípulo – que futuramente viria a assumir o papel do novo Marcial.
Só que quando ele fez isso, surgiu também o herdeiro de ninguém menos do que o Luz Negra, para incômodo e consternação de pessoas ligadas a heróis antigos.
A década seguinte cozinhou a divisão que se estabeleceria nos novos heróis que surgiam: os herdeiros do Campeão Primeiro procuravam apaziguar os ânimos e apagar os ânimos, mas o que se desenhava era um conflito claro de posições. Enquanto o novo Marcial passou a ser a voz de uma postura de proatividade, da necessidade de agir para se criar mudanças contra as injustiças, o Luz Negra definia que os heróis deveriam manter a lei e a ordem – se a política é corrupta, a sociedade deve limpar a corrupção; isso não é função dos super-heróis.
Enquanto isso, a grande mídia parece ter aceitado melhor os heróis e tomado o partido do Luz Negra – que diferente da postura séria do seu antecessor, tem um tom mais discursivo e agressivo, tratando Marcial como um irresponsável cujo discurso cria terroristas em potencial, não super-heróis. Já o novo Marcial, por sua vez, sabe quem foi o Luz Negra original mas não tem como dizer isso na mídia – até porque ela parece se alinhar ao seu oponente. Ele vê nos heróis conservadores de Luz Negra a tropa de choque de uma mentalidade repressora – e na verdade, ele não está muito errado. Para piorar, entre os novos descendentes do clã do Campeão Primeiro, já há heróis que tomaram um lado ou outro, enfraquecendo o controle exercido pelo velho clã.
Estamos em 2012 e resta a pergunta: que herói você será para seu país?
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[1] Carcará Vermelho – inspirado no Capitão Gralha de Francisco Iwerten (1940)
[2] Campeão Primeiro – inspirado no Capitão 7 de Rubem Biáfora (1954)
[3] Aamo, o Espírito da Lua – inspirado no Homem-Lua de Gedeone Malagola (1965)
[4] Luz Negra – inspirado no Raio Negro de Gedeone Malagola (1964)
[5] Malyr, o Mistério Vivo – Inspirado no Mylar, o Homem Mistério de Luiz Meri e Eugênio Colonesse (1967)
[6] Otep – Inspirado em Mystiko, de Percival de Sousa e Rubens Cordeiro (1967)
[7] Seláquio, o Homem-Peixe – Inspirado no Hydroman de Gedeone Malagola e Momoki Akimoto (Provavelmente 1964 ou 1965)
[8] Guitarra – Inspirado no Golden Guitar, de Rivaldo Macedo e Anísio Torres (1966)
[9] Marcial – Inspirado no Judoka, de Pedro Anísio e Eduardo Baron (1969)