Ano 20XX
Ciência. Tecnologia. O mundo digital gira na velocidade da transferência de dados, e os laços entre as pessoas se perdem. Cada um vivendo em seu próprio mundo ilusório. E a humanidade cada vez mais vira escrava de sua própria ferramenta. O mundo cheio de informação torna-se vazio de conhecimento.
Um novo sistema de satélites, chamado Arcadia, cobre o mundo com seu sinal, disponibilizando internet em velocidade e qualidade nunca antes vista por todo o planeta, e logo monopoliza o mercado digital. Crescendo descontrolada, essa rede encontrou e criou problemas muito mais rápido que é possível resolvê-los, culminando num evento que ficou conhecido como O Eclipse, durante o qual nenhum aparelho digital funcionou, em todo o planeta. O incidente durou exatamente uma hora e, durante o minuto final, um vulto sombrio apareceu em todos os monitores e falou por todos os auto-falantes:
“Preparem-se, humanos. Em sua tolice e arrogância, vocês despertaram um inimigo muito maior que poderiam imaginar. Sua provação está apenas começando”.
Apesar de quase impossível de abafar, de algum modo o incidente foi lentamente esquecido e, 10 anos depois, começa nossa história.
Estranhos bugs voltam a rondar a rede Arcadia, gerando reclamações e revolta dos usuários, enquanto a empresa nega qualquer defeito em seu sistema. Usando a Underworld, uma rede clandestina, testemunhas relatam o surgimento de estranhas criaturas no sistema, que desaparecem sem deixar rastros.
Surgido do nada, um MMO chamado Digital Duel toma de assalto o mercado, contando com milhões de jogadores ao redor do mundo, todos desejando se tornar o mais forte duelista. Muitos mergulham de cabeça no jogo, abandonando suas vidas.
Já no mundo real, as coisas não são nem um pouco mais fáceis. O clima enlouqueceu, enquanto cada vez mais os problemas digitais se tornam reais, quando alguns deixam sua personalidade “verdadeira” da internet tomar conta da realidade.
É o pôr-do-sol do último dia de primavera, mas ao mesmo tempo é a aurora de um novo mundo.
Mais um dia enfadonho. Mais um dia de rotina, de repetição. Como um relógio, todo dia a mesma coisa. Se pudesse vender seu tédio, faria uma fortuna. Não existe NADA de interessante nesse mundo? Mas o outro, ah, esse sim tinha algo a oferecer.Naldo
E enquanto mergulhava nos jogos da Arcadia, mal notou a notificação de e-mail surgir no canto da tela. O assunto: “Liberdade”.
Normalmente esse e-mail iria direto pra lixeira, mas algo o atraiu nele. Ao abrí-lo, se deparou com uma daquelas mensagens clichês de “ajude a salvar o mundo” e “só você pode fazer isso”, mas no final, tinha uma pergunta interessante:
O que você deseja se encontra nesse mundo? Você é livre aqui?
( ) YES ( ) NO
Com um suspiro de cansaço, marcou NO sem hesitar. E o que aconteceu em seguida o surpreendeu. A imagem do monitor começou a chuviscar e se deformar, enquanto ruídos eletrônicos saíam pelo headset. Um vírus? Na Arcadia? Impossível.
A imagem se fixou numa tsunami, uma muralha de água furiosa, que se abriu revelando uma fenda de escuridão. Em seus ouvidos, o som de uma conexão discada explodia em seus ouvidos. Ele sentiu a imagem aumentando, puxando ele pra dentro de si. Foi sugado, arremessado pra dentro do turbilhão aos gritos.
Acordou deitado na areia, sentindo o sol quente no rosto. Olhando ao redor, se viu entre árvores tropicais verdejantes, e a brisa trazia o cheiro do mar. Ainda incapaz de processar bem sua situação absurda, viu caminhando na areia, um cachorro azul de luvas de boxe, carregando bolinhos de arroz nos braços. Mas o que diabos…?
Na volta de mais um dia no dojô, enquanto o sol se punha, Kyomaru estava andando diante de uma loja de eletrônicos, as TVs de alta definição mostrando um programa sensacionalista qualquer. O apresentador falava sobre como os defeitos na Arcadia estavam ficando mais comuns, e sobre relatos desconexos de criaturas estranhas na rede.Kyomaru
Seu interesse por tais assuntos era pouco, mas parou para ouvir a entonação engraçada do apresentador. Logo em seguida, o assunto mudou para o tal jogo online que estava em alta no momento, e sua suposta relação com rituais de invocação satãnicos. Mas como o falante era outro, tinha perdido a graça.
Chegando em casa alguns minutos depois, e retirando os pesados pesos de treinamento, ligou o videogame. Começou uma partida online do jogo que havia chamado sua atenção nos ultimos tempos. Era um jogo de kendô, com uma fidelidade de técnicas e movimentos impressionante, e uma função de slow-motion muito boa para entender os movimentos dos personagens. Apesar do realismo, os inimigos do jogo eram todos zumbis e insetos gigantes.
Estava jogando no modo versus com um oponente particularmente complicado, quando recebeu uma mensagem pessoal de um nick que não conhecia, uma simples mistura de números e letras.
Curioso, pausou o jogo e abriu a mensagem, que dizia, em letras vermelhas, oferecer uma oportunidade de aventura única na vida, e que só ele poderia salvar o mundo. Devia ser propaganda da demo de algum jogo novo.
— “Digital World”, huh? Vou deixar baixando enquanto termino a partida.
Mas quando clicou, o que se seguiu foi uma enxurrada de cores e sons, enquanto sentia seu corpo ser puxado para o centro. Quando estava prestes a bater de cabeça na TV, desmaiou.
Acordou deitado contra um coqueiro, numa praia de areia branca. “Que sonho esquisito”, pensou. Olhando ao redor, viu duas coisas fora do comum. Deitada do lado oposto da árvore, uma garota de cabelo roxo dormia tranquilamente, e bem na sua frente, um dragão azul corria em sua direção, com lágrimas nos olhos, gritando.
— Kyomaruuuuuuuuuuuuuuuuuuuuu! Eu te acheeeeeeeeeeeeeeeeeeeeeeeeeeeiiiiiiiiiii!
Com um forte impacto, a criatura se jogou nele, abraçando-o com força.
Segundos depois, sentiu um baque do outro lado da árvore, e logo em seguida sentiu um coco cair em sua cabeça.
Era a décima vez em menos de um dia que Kizô se perguntava se estava ficando louco. Estava falando com o computador. Ou melhor, com a criaturinha que tinha brotado em seu computador. Parecia um bichinho de pelúcia, mas tinha a língua bem afiada. A contragosto, ela aceitou o nome de Hikari, dizendo que era tão irônico que até combinava.Kizô
De qualquer maneira, ele recebeu um e-mail de alguém que alegava saber o que tinha acontecido. Dois, na verdade, e bastante contraditórios. O primeiro, de alguém chamado Masaki, dizia que o que tinha acontecido era um problema na transferência de dados, e que em algumas horas estaria tudo pronto para a viagem (?). O outro, da própria Corporação Arcadia, dizia que ela era um defeito no programa, instruindo ele a desconectar o PC da rede e desligá-lo, e aguardar a equipe que viria buscar a máquina. Prometiam resolver o problema em um dia e devolver o computador em perfeito estado. Que estranho.
Desde a chegada desse último, Hikari tinha entrado num silêncio de túmulo. Talvez estivesse desconfiada que ele a entregaria pra empresa, mas não tinha por quê. Ele estava começando a se afeiçoar àquela bola de pelos, sem falar na curiosidade por uma criatura tão exótica.
O sol se punha quando ouviu chamarem no portão do abrigo. Olhando pela janela, viu um furgão branco, com o logotipo da Arcadia na lateral, de onde saíram dois funcionários de macacão. Logo à frente, estava um carro preto estacionado, de onde saiu um homem corpulento de terno e gravata. Sua pele negra, cabeça raspada e óculos escuros remetiam a um guarda costas, muito mais que a um funcionário de uma empresa de computação.
O pátio estava muito quieto naquela hora, e ele pôde ouvir com clareza o que diziam.
— Olá. Nós somos o pessoal que veio buscar o computador defeituoso. Meu nome é Jonathan Smith. — disse ele, com uma voz grave e forte, enquanto entregava um cartão à senhora que tinha ido atender o portão.
— Defeito? — Ela perguntou, balançando a cabeça — Não tem defeito não, o computador é velho mais ainda funciona.
— Então não foram avisados? Aquele computador está com um vírus muito perigoso, precisamos consertá-lo imediatamente. Obviamente, o serviço sairá de graça.
— Ora, então entre, por favor.
O grupo entrou no prédio, sumindo de vista.
Talvez guiada por instinto, Hikari gritou, bem quando começaram a subir as escadas.
— Kizô, encoste no monitor agora!
— O que?
— Agora, sua anta! Tem que ser agora!
Kizô tocou o monitor, bem na hora em que a porta do pequeno escritório era aberta. Enquanto o homem de terno corria em sua direção, gritando para que se afastasse do computador, uma luz forte brilhou do monitor, e tudo ficou escuro.
Quando deu por si, estava deitado sob um céu estranho, colorido, pintalgado aqui e ali. Sentando-se, sentiu areia entre os dedos, e se viu numa praia paradisíaca.
Sentiu um toque macio no braço, e se virou. Ao seu lado, em toda sua irritação, estava Hikari.
Depois de todo o drama da semana anterior, Yukari estava se sentindo terrivelmente cansada. Precisava encontrar um jeito de abaixar a tensão, ou ia acabar explodindo. Talvez dando umas pancadas no Kendô Zombie Crushers: Arthropod Revolution, pudesse se acalmar um pouco.Yukari
Jogando versus contra um desconhecido, sua estratégia de fintas estava funcionando, mas o cara era durão. Estava finalmente começando a se distrair, quando uma mensagem apareceu. No assunto, “Digital World”. Clicou em menos de um segundo.
A TV escureceu na hora, e o que parecia uma bocarra negra a engoliu.
Estava tirando um ótimo cochilo recostada num coqueiro quando algum gênio decidiu bater na árvore como se fosse um mastodonte, e um coco laranja caiu na sua cabeça.
Abrindo os olhos e esfregando o galo que se formava, olhou enquanto uma criatura peluda corria em sua direção, pulando nela como se fosse uma marreta. Ouviu os cocos do outro lado caírem no que soava como a cabeça de duas pessoas. *Toc, Toc*. Se virando, viu um garoto com um robe de kendô abraçado com um dragão azul.
Agora era oficial. Tinha pirado de vez.