Dia do Reencontro
Primeiro dia do ano.
Quarto de Aldred
O sol o acordou com um tapa na cara. O calor. Sua confortável cama em seu abastado quarto estava ensopada. Enquanto se movia lentamente, o mundo girava e ele sentia o suor pelo corpo. Encostando a mão na parede ao lado da cama, ele tentou em vão controlar o mundo. Ele tinha o cheiro de álcool em sua roupa e cabelo ensebado de fumaça. Aos poucos Aldred se acostumava à dor de cabeça incessante e suas memórias do dia anterior voltavam.
Ele e Korn haviam bebido na Taverna do Pombo Perneta, bem no centro da
Baixa Vila de Lena - o bairro boêmio da cidade - em comemoração à sua defesa da monografia do curso de História o qual concluíra em quatro anos. Estava orgulhoso de si mesmo pelo feito, pois nunca havia se considerado um acadêmico como a mãe. De algum modo, o diploma requintado era uma aproximação com os assuntos de Therese, sua mãe.
A noite foi longa e, pelo visto, o dia seria péssimo. Não havia conseguido dormir muito bem. O verão estava muito quente e, sujo do jeito que estava, não conseguiu descansar o suficiente. Ele tirou as roupas, jogando em um cesto de roupas sujas transbordante. Estava apenas de ceroulas quando ouviu sua irmã.
Maryanne
Tá pensando que tem algum empregado aqui? Leva essas suas roupas fedidas lá pra área e as lave. Você tá quase sem roupa.
A irritante voz da irmã o fez suspirar, cansado. Aldred gostava da ideia de não ter empregados, explorar seu trabalho e pagar miséria. Mas, por outro lado, torcia o nariz para realizar tarefas comuns da casa. Seus pais estavam em Wynlla, pois sua mãe palestraria em alguma universidade mágica. Que tipo de universidade dá uma palestra no primeiro dia do ano? Aldred II, seu pai, também havia ido. E insistido irem a cavalo e não por teleporte, pois sentia falta de cavalgar por grandes distâncias com Farrapo.
Aldred
Urgh... eu sei. Aliás, você não devia estar em Gorendill?
Afinal, Maryanne estudava, teoricamente, para ser uma barda no
Conservatório Twilight.
Maryanne
... eu voltarei hoje. Pegarei a carruagem com minhas amigas hoje a noite, depois dos fogos...
Mentiu. Na verdade, nem seu irmão nem seu pai sabiam que ela havia sido treinada secretamente por Satoshi Yamada, a exemplo de Aldred III. E naquela noite ela partiria sim, mas não para Gorendill, mas para sua primeira missão como aventureira. Neste quesito, ela já estava na frente no caminho do mundo de aventuras. Apenas sua mãe sabia disso, obviamente, pois é muito difícil esconder informações de uma maga telepata.
Aldred
Sei. Bom, eu vou também sair de casa hoje. Depois dos fogos...
Maryanne deu um sorriso de canto de boca. Estava contente que seu irmão, finalmente, sairia de casa. Ao contrário dele, aos 20 anos, Maryanne partiria imediatamente após terminar seu treinamento com Satoshi.
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Casa dos Incarn Maedoc
Aldred tomou seu banho e aproveitou para lavar suas roupas. Por volta do meio dia, já havia estendido no varal do quintal. Aproveitaria o dia quente e ensolarado para que secassem o quanto antes. Levaria uma muda de roupas consigo. Ele andou pela casa - agora, "casa dos pais" e não mais sua casa - como se fosse pela última vez, num drama característico de sua personalidade. Viu seu quarto e sorriu.
Aldred
Foram boas lembranças... até um dia.
Ele fechou a porta e a trancou, guardando a chave no bolso de sua jaqueta. Ele saiu pelo portão da frente, mas não viu mais Maryanne. Talvez a visse a noite. Talvez não. De qualquer forma, aquele pareceu um adeus apropriado para irmãos próximos, mas que não costumavam ter demonstrações de carinho frequentes. Mais tarde, após uma refeição com pernil de porco feita no forno a lenha da própria casa, mais alguns grãos e uma cerveja, ele estava saciado. Pegou a muda de roupas do varal e pôs na mochila.
Ele estava pronto, com sua katana na bainha, a quem ele deu nome de "Hikari-Katto", ou "corta luz" em tamura-nin.
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Estalagem/Taverna do Pombo Perneta da Praça
Era começo da noite quando Aldred pediu sua segunda caneca de cerveja para a filha do taverneiro Brauner. A menina de cabelos castanhos encaracolados trouxe timidamente para o rapaz. Aldred brindou com seu melhor amigo, Korn.
Korn
Boa, cara. Então, essa é a última vez que nos vemos?
Ele deu um longo gole, quase matando a caneca de uma vez.
Aldred
Claro que não. Eu voltarei sempre pra Valkaria. Aqui vai ser minha "base de operações", por assim dizer.
Korn ri batendo na mesa.
Korn
Já tá falando como um tipo de herói. Cara metido...
Aldred
Metido nada, confiante...
Enfim, esvazia sua terceira caneca.
Korn
Ontem foi pelo seu diploma. Hoje pelo início da sua "carreira"... quando vamos beber até cair por alguma coisa minha?
Ele ri. Aldred ergue o dedo e pede mais uma caneca para a menina.
Aldred
Desde quando tu precisa de motivo especial pra beber, rapá?
A quarta caneca chega. Mas Korn não pede a quarta dele. Aldred o olha estranho.
Korn
Não dá pra beber demais como ontem. A patroa vai me expulsar de casa se eu voltar tropeçando nas pernas de novo...
Ele ri, mas Aldred parecia mais sério, bebendo sua caneca mais devagar.
Aldred
...
Korn
Algum problema?
Disse o goblin, incerto do que acontecia. Aldred não era muito bipolar.
Rainha Eterna
Sabe, por mais que você tente explicar... eu ainda não consigo entender como o sangue-do-meu-sangue consegue ser amigo de formas de vida tão inferiores...
Korn dá um tapa na testa de Aldred.
Korn
Coeh, maluco, tô falando com você, carai. Cuspiram na tua cerveja?
Aldred
...
Rainha Eterna
Você vai deixar seu amiguinho no vácuo, meu descendente?
Aldred se levanta rapidamente da cadeira.
Aldred
Eu vou... eu tenho que ir, Korn. Foi mal e... até.
Ele saiu deixando alguns tibares para o amigo, pois sabia que ele tinha dificuldades financeiras. Korn o viu partir sem conseguir entender.
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... um tempo depois.
Rainha Eterna
... e então, vamos naquele baile dos Lancaster que sempre dão no primeiro final de semana do ano e...
Aldred não falava há quase uma hora, desde que saíram da estalagem. Agora ele caminhava pelas ruas da
Baixa Vila de Lena. A criancinha de não mais de dez anos caminhava ao seu lado, sapeca. Às vezes ela o rodeava, saltitante. Ela tagarelava sobre bailes e festas que gostaria de visitar com ele. Afinal, ela só podia visitá-los com Aldred. A Rainha Eterna era uma maldição, uma aparição da ancestral dragoa dourada, fundadora da família Maedoc, que agora estava presa a um corpo de criança, pois estava "recobrando seus poderes aos poucos".
Aldred sentia-se sempre mal quando ela aparecia, mas acabou se acostumando com sua presença, depois de quatro anos de convivência. Ele acabou se habituando com sua personalidade difícil e arrogante - que ele atribuía ao fato dela ser uma dragoa... - e a tratava como uma criança e, às vezes, como uma amiga. Mas hoje ele estava diferente. E ela notou.
Rainha Eterna
Ohhh? Você tava mesmo falando sério nesses últimos dias quando pensava em se tornar aventureiro? Um "herói"?
Ela deu uma risadinha dolorosa de se ouvir.
Aldred
Sim, garota. Eu falava sério. É meu sonho. E finalmente vou cumpri-lo.
Havia muita determinação na voz de Aldred. A Rainha o olhou de esgueira, dando um saltinho para perto dele.
Rainha Eterna
Mesmo após todos esses anos acomodado em sua vida de riqueza com seus pais? Finalmente meu descendente favorito vai sair de casa?
Aldred
Sim. E você não pode me impedir. Você nem consegue tocar nas coisas do mundo real, tu é quase um fantasma.
A Rainha riu novamente.
Rainha Eterna
Impedir? Bobinho, eu
quero que você se aventure. Eu quero que você se desenvolva. Eu quero que você fique mais forte.
Ela o para, encarando de frente. Aldred poderia atravessá-la, como já o fez várias vezes. Afinal, ela era intangível. Mas ele parou ao ver seu semblante sério.
Rainha Eterna
Você é sangue do meu sangue. Você é meu descendente de mais potencial. Mais até que teu pai. E sua força é minha força. Cada passo que você dá adiante, é um passo que
eu dou rumo à minha verdadeira forma, ao meu ápice, ao meu esplendor glorioso.
Aldred sorriu.
Aldred
E se eu te chamasse de "Esplendorosa"? Ou "Princesinha"? Talvez "Realezinha"? Melhor que rainha, né? Afinal, você não tem reino, não tem poder... nem ao menos consegue tocar nas coisas. Só consegue encher o saco de um fracassado como eu...
Ela puxa a jaqueta de Aldred. Ele sente o puxão pela primeira vez. Ela aproxima bem seu rosto ao dele.
Rainha Eterna
Esta é a prova que estou evoluindo.
Estamos evoluindo. Você não é um fracassado. É meu descendente. Meu sangue não é fraco.
Ele sorri e faz uma caricia em seu cabelo. Ele sempre quis fazer isso, mas não podia. Era uma boa novidade poder tocar em sua cabeça. A Rainha amoleceu.
Depois, eles andaram mais um pouco.
Rainha Eterna
Ei, já que você decidiu seguir o tal do teu sonho, por onde pretende começar?
Aldred para por um segundo. Vira-se para ela.
Aldred
Não sei.
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Com os fogos vieram as comemorações. O Dia do Reencontro tinha festa nas ruas, com bardos tocando e cantando, malabares e outros artistas de rua faziam a alegria das pessoas. A cosmopolita Valkaria possuía todo tipo de raça, etnia e credo espalhadas pelos bairros em festa. Principalmente na Baixa Vila de Lena, onde Aldred estava. Ele aproveitava para fazer uma boquinha, comendo espetinho de carne de procedência duvidosa. A Rainha Eterna corria, serelepe, entre as pessoas - que não a viam, obviamente - fazendo caretas e outras brincadeiras, arrancando sorrisos de Aldred.
Ele aproveitou para ponderar sobre seus primeiros passos. Sabia que Valkaria receberia milhares de pessoas ao longo da semana devido à chegada de Vectora no dia 06 de Altossol. Muitas caravanas chegariam e partiriam. E muitos partiriam antes mesmo da chegada da cidade voadora. Vectora seria uma opção de começo, mas ele imaginava que lá a concorrência seria grande demais. Muitos heróis famosos passam por lá e dizem que a cidade voa para outros planos de existência. Não era um começo exatamente simples, como ele pensava. Ele queria começar de baixo, escoltando uma caravana para outro lugar, talvez.
Ele lembrou que seus pais o apoiavam nessa empreitada. Sua mãe, preocupada, fez todas as recomendações possíveis. Seu pai também, mas ele foi ainda mais incisivo:
"Tchê, tu és uma pessoa independente agora. Não pense em procurar nossa ajuda para resolver teus problemas, nem peça nosso dinheiro. Agora, tu estás por sua conta. Caso queira dar uma "pausa" no trabalho, venha nos visitar..."
Aldred queria ter umas ajudas de vez em quando, mas sabia que seu pai falava sério.
A comemoração avançou pela madrugada e, antes do sol despontar no horizonte, a Rainha Eterna havia se recolhido para seu semiplano particular. Aldred havia encontrado uma estalagem onde havia muitos caravaneiros aportados. Pensou em dormir ali para acordar na hora do almoço e ficar de butuca, esperando a oportunidade de oferecer seus serviços de espadachim...