Gritos. Ordens. Barulho. Todos lá fora berravam uns com os outros, ordenando ao demais o que fazer. Havia os que praguejavam, enquanto outros tentavam encorajar os companheiros. Mas a verdade era que eram pouco mais que crianças ali. Tentavam convencer a si mesmos de que estavam fazendo algo de importante, de que eram o último recurso em caso de necessidade, mas no fundo sabiam que eram só os que foram deixados para trás. Os menos aptos. Ela também sabia.
Através das grades podia vê-los correndo de um lado a outro, lanças, espadas e insegurança. Foi assim desde o início da tarde. Desde que passaram pelo forte os dois mensageiros esbaforidos. Traziam a mensagem do ataque de uma horda bárbara.
Ela havia chegado um pouco antes, acolhida por um casal de soldados, pouco mais que adolescentes, que a encontraram nas colinas enquanto patrulhavam. A levaram até o forte, uma sólida construção de madeira. Enquanto chegava, um tropel a cavalo partia. O líder dos cavaleiros, um homem louro de ar empolado e expressão brava lhe dignou um rápido olhar, pouco menos que desdém, antes de puxar as rédeas e seguir. Iam verificar a situação em Campodouro, ela soube logo mais. A cidade havia sido atacada na noite anterior e todos estavam em alerta.
Realmente, algumas horas depois, eles avistaram uma horda que não tinha fim. Pessoas que não eram mais pessoas. A pele delas tinha um tom amarelado doentio. Algumas carregavam armas, outras crispavam as unhas, tornadas em garras. Outros eram enormes, deformados. Uma quantidade de pessoas que ela jamais havia visto reunidas em um mesmo lugar. Todas passaram reto pelo forte. Seguiram o mesmo caminho dos cavaleiros, rumo a tal Campodouro.
Súbito, um barulho ensurdecedor fez com que Maria voltasse ao tempo presente. O chão tremeu e um clarão ofuscou o mundo por um instante, mais forte que um trovão. Um garoto ruivo, cheio de espinhas, caiu no chão lamacento com o tremor, atrapalhado com a própria armadura. Um homem bem mais velho chegou e ergueu o braço a ele. Ele tinha espada em punho e expressão de lobo. Era o primeiro soldado que via, desde a partida dos cavaleiros, que parecia realmente saber o que fazer. Com um tapa amigável, indicou ao garoto onde se posicionar. O soldado mais jovem agradeceu e seguiu. Então o lobo a viu e foi até ela.
— Você é a garota que pediu para ser presa. Por que fez isso?
— Eu não queria… Eu queria me proteger do ataque — respondeu Maria, surpresa pela abordagem do homem.
— Como isso lhe protegeria? Se aqueles monstros decidissem invadir o forte, não teriam dificuldade em arrombar estas grades. Eles são muitos.
— Eu não sei — Maria se sentia contrariada por ter sua ideia contestada. Detestava ter que lidar com outras pessoas por causa de coisas como aquela. Mas ela não revelaria o real motivo de ter se trancado. Não queria correr o risco de perder a cabeça e, no frenesi, acabar matando os defensores do forte. — Eu só não queria me envolver.
— Perdão. Estava lhe tratando como um soldado. — O homem mudou o semblante e afrouxou os ombros. Estendeu a mão a ela por entre as barras da gaiola de ferro. — Sou Camacho, oficial do exército de Deheon a serviço aqui, no Forte Campodouro.
— Maria — respondeu a garota maltrapilha. Um pouco confusa sobre o que fazer com a mão estendida do soldado, não fez nada. Ele recolheu a mão.
— Entendo se quiser se manter aí. Mas preciso ser sincero. Caso soframos uma invasão, não terei como garantir sua proteção. Mal consigo coordenar estes jovens soldados.
— Eu não preciso de proteção. Eu —
Antes que Maria completasse sua resposta, veio outro estrondo. E mais um. Três. Depois eram tantos que não foi possível contá-los. Eram tão fortes quanto o primeiro. O chão tremeu por algum tempo e o clarão foi tão forte que deixou todos cegos por instantes. Camacho recobrava o equilíbrio, apoiado na grade da prisioneira auto imposta.
— Seja lá o que for isso, espero que seja do nosso lado.
Maria não sabia quem era o responsável por aquilo, mas sabia exatamente o que era. Podia sentir o cheiro nauseabundo a quilômetros de distância.
Magia.
* * *
Nightmare ainda tentava assimilar o que havia acabado de acontecer. Tentava repassar em sua cabeça. Varreram a horda da existência, isso era certo. Enfrentou um deles que era maior. Depois o encontro com o cavaleiro poderoso e seu dragão morto-vivo. Frio. Chuva. Lama. Noite. Então se deu conta de que as próprias mãos estavam diferentes. Não eram mais suas mãos. Mas eram. Se deu conta de que, pela primeira vez em sua existência, era noite e não era Nightmare. Mas também não era Dream.
Lembrou da corte das fadas, de seu auxílio. De seu abandono. Das palavras de suas mães. Do aviso. Da punição. Não era mais o príncipe altivo das fadas, tampouco a princesa caprichosa. Era os dois em um. Era aquilo que evitava e que buscava. Um terceiro e agora único.
Era Sandman.
Chorou.
* * *
— Não estou pedindo permissão! Eu vou até lá, quer você queira ou não! — Maria quase vociferava para Camacho quando, pela terceira vez ele dizia que não seria responsável por ela.
— Certo — ele demonstrava impaciência, olhando em direção à aldeia. Em seguida, dirigiu um olhar aos outros dois soldados que estavam juntos — o mesmo casal que a recolhera mais cedo naquele dia — e deu o sinal para começarem a cavalgar. Os quatro partiram rumo a Campodouro.
Maria não tinha certeza de nada. Queria investigar, mas ao mesmo tempo temia o que poderia encontrar. A horda inegavelmente havia sido dizimada, como os restos de corpos pútridos e recobertos de sangue negro e oleoso demonstravam, e isso era o que dava confiança a Camacho para que seguissem. A chuva havia voltado à sua constância habitual, lavando tudo.
Era o fim do crepúsculo, então ainda foi possível ver o estado do terreno da aldeia. Enormes crateras redondas se apresentavam antes da cidade, algumas com profundidade suficiente para comportar dois homens um sobre os ombros do outro. Mas não havia nenhum homem lá dentro. Apenas partes de homens, mulheres, crianças e monstros. Braços. Pernas. Vísceras. Lodo negro. Tudo era devastação. Tiveram que apear dos cavalos e guiá-los a pé, para contornar as crateras e chegar na tão falada Campodouro. Algumas dezenas de metros depois dos enormes buracos, algumas pessoas estavam reunidas, no meio do barro. Alguns velhos, alguns jovens. Conversavam. E no chão, ao centro do círculo de pessoas, dois olhinhos luminosos. Uma fada.
Uma criatura de pura magia.
* * *
— Você… É Dream? — A voz do senhor Aldir estava incrédula. O velho homem chegou, acompanhado de Borys e alguns dos garotos que estavam ajudando no suporte. Sandman ainda estava chorando quando eles se aproximaram. Ergueu os olhos e pode vê-los de perto. Era como se muitos meses tivessem se passado desde a última vez que os havia visto tão próximos. Então, percebeu os contornos por detrás dele. Campodouro. Ou parte dela.
Todas as estruturas até quase a metade do vilarejo haviam virado escombros. Viu a fundação de pedra da casa onde havia estado na noite passada, junto do conde, antes do festival e do primeiro ataque bárbaro. Notou que lembrava de tudo o que fizera como Dream e como Nightmare.
Precisava colocar a cabeça no lugar. Organizar os pensamentos. Muitas coisas aconteceram em um espaço de tempo muito curto.
OFF
• E começamos a parte 11, com a estreia de um novo jogador. Seja bem-vindo, Keitaro!
• Dice, voltamos à distribuição normal de PFs. Não será mais como nas últimas partes, em que você recebia PF a cada trê posts em dia.
• Vocês têm até 21/12 (sexta-feira) para postar sem perda de PFs. A próxima atualização será em 22/12.