Anahera
A velha demorou um bom tempo para entender o que Anahera dizia. A khubariana teve que repetir mais duas vezes o que queria, antes de ser compreendida. Sovnya tinha um grau avançado de surdez no ouvido esquerdo. Quando a velha entendeu o que lhe foi dito fez um sinal afirmativo com a cabeça e começou a caminhar em direção à saída da tenda. Enquanto andava, ela começou a falar.
— Você não é daqui, menina. Há alguém queimado com você?
— Ainda não — respondeu ela.
— Pretende queimar alguém?
— Talvez… Acontece com certa frequência. Nem todos compreendem as bênçãos de Kurur Lianth, e aqueles que não o aceitam podem acabar se queimando.
A velha parou por um instante e voltou-se para olhar Anahera melhor. Não perguntou mais nada e seguiu adiante.
— Vamos à minha casa. Tenho lá o que você precisa.
Anahera viu uma luz de reconhecimento nos olhos opacos da idosa, diferente do que em geral acontece quando menciona sua divindade protetora. Ainda assim, a possibilidade de encontrar alguém familiarizado com sua cultura no coração do Reinado era remota. Como sua melhor chance de conseguir algum remédio naquela cidade era mesmo Sovnya, não tinha escolha exceto segui-la.
A curandeira pensava sobre as possibilidades quando se deu conta de que à porta da tenda estavam parados Caelynn e Dream. O pequeno sprite estava animado, cheio de vontade de desfrutar cada canto daquele lugar. A elfa mantinha uma expressão séria, esquadrinhando cada canto da grande tenda, como se estivesse esperando sofrer um ataque.
Os olhos de ambos se cruzaram por um instante, e Anahera cumprimentou-os com um aceno único. Quando passou ao lado dos colegas, disse:
— Vou sair um pouco. Se precisar de mim, vou estar por perto.
***
Vocês seguem por algumas dezenas de metros até uma casa simples. Nenhuma das duas parece se importar com a garoa incessante ou com o barro. Quando entra no lugarzinho, à convite da velha, Anahera se depara com um único cômodo, com parades forradas de ervas dependuradas e plantas estranhas em incontáveis vasos. Em um dos cantos, uma cama limpa de palha parece estranhamente confortável, enquanto ao centro do lugar uma mesa grande, mas baixa está repleta de facas, frascos com unguentos e utensílios diversos que a clériga reconhece, específicos para tratar ervas. Ao fundo, uma lareira tem sinais de fogo recente, mas não tanto a ponto de aquecer a casa.
— Queixume de Cocatriz é bom para aliviar as dores da pele — disse a idosa, arrancando um ramos dependurado em uma das paredes. — Faça um emplastro com Baba-de-Observador e também vai reduzir a inflamação. Dente-de-Rainha é bom para febres, mas você não pode exagerar na dose, ou vai causar um desarranjo em quem beber…
A velha começou a recolher ervas e dizer suas propriedades, e Anahera não tinha bem certeza se estava falando para si mesma ou para ela. De toda forma, a mulher mostrava conhecimento profundo sobre o que dizia. Quando as mãos da anciã ficaram cheias, ela chamou Anahera para segurar ,enquanto pegava mais material. Quando se deu por satisfeita, largou tudo na mesa e começou a macerar e cortar.
— O que alguém como você faz tão longe de casa? — A velha não se deu ao trabalho de olhar para a clériga, enquanto continuava seu minucioso trabalho.
— Às vezes a vida nos leva para longe. Estou pagando o preço pelas tolices que cometi na juventude. De qualquer maneira, meu trabalho me mantém ocupada demais para pensar nos arrependimentos.
— Bom — respondeu a velha. — A sina de quem cura não pode incluir o luxo de pensar em si mesmo.
Ela parou de macerar e olhou novamente nos olhos de Anahera. Parecia estar buscando algo de lá.
— Se se mantiver fiel ao que você é, vai ter a chance que procura. Das chamas você veio. Para as chamas terá a chance de voltar — e tornou a trabalhar nas ervas, como se não tivesse dito nada.
Caelynn e Dream
Aquilo tudo ficava cada vez pior para Caelynn. A chuva, aquela gente suspeita, a ingenuidade de seu companheiro... A elfa decidiu manter o rigor e investigar melhor a tenda em que adentravam, para não ter que pensar naquela situação.
A primeira sensação ao chegar no lugar é o calor: a quantidade de pessoas agrupadas ali dentro deixava o ambiente abafado, em contraste com a umidade externa. A tenda foi montada a partir de uma taverna simples, certamente o único local do tipo no vilarejo. A taverna fica ao fundo do espaço, uma estrutura de madeira, com algumas mesas e cadeiras à frente. Estão todas vazias (a maior parte das pessoas está de pé, indo de uma barraca a outra), exceto por uma mesa, ocupada por um humano alto e careca, com um farto bigode, que bebe junto de um anão. O humano parece um pouco perturbado e o anão parece o estar aconselhando de alguma forma.
Nos dois lados da grande tenda há bancas menores, vendendo todo tipo de alimento e especiaria. A maior parte são produtos feitos a base de weiz: pães, bolos, farinha, cerveja, massas, bolachas... Algumas bancas são claramente de reinos distantes, cozinhando alimentos exóticos, com cheiros incomuns que preenchem o ambiente, disputando o olfato dos presentes. Nada élfico, a princípio, para aumentar o desgosto de Caelynn. Havia um soldado do forte entre uma das tendas, ela pode identificar pelo brasão e por sua postura. O homem circulava pelo local, simpático, mas prestando atenção a tudo.
Nada mais pareceu chamar a atenção da elfa, a não ser Anahera, que vinha em sua direção, acompanhando uma senhora idosa. Quando a clériga passou pelos colegas, disse:
— Vou sair um pouco. Se precisar de mim, vou estar por perto.
Magnus
— Deseja alguma coisa,
cavaleiro?
Era
sir Loric, que havia enfim notado a proximidade de Magnus. Havia um claro tom de desprezo em sua voz. A garota arqueira ficou animada quando o viu.
— Você é o cavaleiro libertador? Devo lhe chamar de
sir, como Loric aqui faz questão que todos o tratem? — ela riu, descontraída, estendendo a mão e deixando Loric desconcertado. — Me chamo Florine!
Goretzka
— Ele foi designado pela própria marquesa Branda Ollen, certamente à pedido do duque de Riddembarr, pai de Loric. Poucos são os que podem se dar ao luxo de dizer que podem cobrar um favor de uma figura como o conde Aldirghan Richta, e nossa marquesa sabiamente aproveitou a situação. Você bem sabe que, apesar de apoiar
lady Branda, não fui favorável quando ela decidiu mudar-se para a capital. Mas ela demonstra que de fato está agindo politicamente a nosso favor por lá.
O senhor de Campodouro parou, tomando um pouco de fôlego, antes de prosseguir a caminhada e o assunto.
— Loric é um dos mais novos entre os quase dez filhos do conde, e portanto sem a menor chance de conseguir qualquer papel de destaque apenas por direito de sangue. Pelo que soube, ele pediu ao pai que fosse destacado para um forte fronteiriço. No fim, quer o que todo cavaleiro deseja: uma chance de mostrar seu valor. Apesar de um tanto afetado com formalidades e ainda achar que está vivendo em uma corte, posso atestar que é um guerreiro bastante competente e líder capaz. O que lhe falta são alguns conflitos de verdade. Depois que ter de defender a própria vida na lâmina da espada algumas vezes, seu espírito vai se ajeitar.
Mais uma parada. Alguém ria alto da direção em que Magnus havia ido. Parece que havia terminado mais uma competição de tiro. Pela abertura de entrada da tenda, era possível ver os primeiros sinais do crepúsculo.
— Sobre o forte, a justificativa oficial são os ataques de algumas tribos bárbaras que vivem na Floresta dos Basiliscos e que atravessam as colinas. Khalmyr sabe o quanto já sofremos com as investidas destes malditos, e o forte certamente tornará a vida deste povo mais tranquila. Mas cá entre nós, eu desconfio que há algo além disso.
Lady Branda mostra que sabe agir por nós no campo político, mas creio que também aja no campo estratégico. Faz já algum tempo desde a última presença de yudenianos por aqui. A última vez foi quando acuaram Ogressa. Não quero que pense que sou um conspiracionista, mas desconfio que estejam preparando algo e nossa senhora está prevenindo um eventual ataque. Vou perguntar ao conselheiro Marchi em sua próxima visita.
OFF
Goretzka conhece Marchi. Trata-se do principal homem de confiança da marquesa, normalmente atuando no território da marca, em constante comunicação com ela. Ele viaja por todas as cidades da região, consultando, anotando necessidades e aconselhando. É um homem na casa dos 60 anos, que cumpre esta função para os Ollen desde a época em que o marquês ainda era vivo.
Borys
Quando o bardo retorna ao salão, a meio-elfa está encerrando sua primeira performance, fortemente ovacionada. Ela ainda performa mais duas danças com maestria, antes de dar sua apresentação por encerrada. O fabuloso Otker sobe ao palco para anunciar que será feita uma pausa nas apresentações até a noite (o que não deve demorar muito, na verdade), quando Borys, o Ghondrimm fará um apresentação, a convite do próprio conde Goretzka.
Borys regozija-se ao perceber o burburinho positivo em relação à sua apresentação. Boa parte dos presentes já ouviu falar de seu nome alguma vez, mas passam reto por ele, enquanto vão deixando aos poucos a tenda. Um problema de se fazer sucesso entre as pessoas pobres é que as apresentações nunca são divulgadas com retratos. Mas isso não seria um problema por muito tempo. Logo todos poderiam assistir pessoalmente à performance do Ghondrimm e reconhecê-lo.
Mały deu um leve guincho, pedindo alguma semente que estava nos bolsos de Borys, despertando o bardo de seus devaneios.