Antes. Virada do ano para 1412.
Aldred respirou fundo, abrindo a porta, sentindo nostálgico o cheiro de seu quarto lembrando da última vez que pisara ali. Lembrou de Fargrimm, todo educado e formal; de Jihad e Ash brincalhões e do sisudo Ladon, quando os Vingadores de Arton conheceram a Morada dos Maedoc. Parecia outra vida.
Sua mochila, cheia de terra e cicatrizes, foi deixada sobre a cadeira de madeira em frente a sua escrivaninha abarrotada de pergaminhos e livros bagunçados. Com um dedo, Aldred constatou pela camada de pó sobre um livro o passar do tempo.
Aldred
Dois anos... e ninguém limpou isso aqui? Tsc.
Comentou sozinho, com um sorriso sem graça, largando sua surrada jaqueta no chão. Sua camisa vermelha, feita de pano onde o símbolo Yamada estava costurado, agora possuía muitos cortes e remendos, de modo que parecia um trapo. Aldred também a jogou no chão pensando em jogar tudo fora. Sim, passou por sua cabeça descansar os ombros pesados, lavar suas cicatrizes no peito e nos braços em um longo banho e finalmente se acalmar em casa. Aposentar-se. Ele merecia.
Sua espada bateu no armário que dava na porta do seu lavabo, impedindo seu avanço.
Hikari-Katto era uma katana especial, presente de seu mestre desaparecido Satoshi Yamada e que agora possuía um encantamento bem-vindo de uma de suas aventuras no Império de Tauron. Aldred havia se despido de suas roupas de aventureiro, mas não de sua espada.
Rainha Eterna
Ela é o reflexo da sua essência, descendente. Não consegue largá-la, faz parte de você.
A criança agora estava um pouco mais alta, de cabelos dourados longos, soltos e olhar mais sereno. Havia crescido após uma batalha no mar em que quase todos os rebeldes aliados de Aldred morreram nas mãos dos tapistanos. Sua aparição, antes precedente de dor de cabeça, agora era apenas um leve incômodo.
Aldred
Eu quero descansar.
Disse num longo suspiro. Ele retirou sua espada da cintura e depositou com carinho sobre o suporte em cima da cama. Em poucos momentos, estava mergulhado em sua banheira numa água morna e agradável. Afinal, era verão em Valkaria e estava muito quente. A Rainha Eterna sentava-se num banquinho e apoiava os braços sobre a borda da banheira de cerâmica.
Rainha Eterna
Seu descanso tem de ser curto.
Sorriu ansiosa, desaparecendo em seguida. Aldred afundou aliviado por ficar sozinho e sem pressão.
***
Primeiros dias de 1412.
Estava na biblioteca, com seu roupão vermelho favorito, sentindo-o um pouco apertado. Aldred desenvolveu músculos e abriu os ombros durante esses dois anos. Seu corpo o colocava numa condição de estranho na velha rotina. Lia um livro qualquer na mesa quando sua irmã apareceu de camisola branca com desenhos infantis bordados. A moleca de sempre. Era noite e Aldred não havia aparecido para o jantar.
Maryanne
E aí, irmão. Tá tudo bem com você?
Geralmente sua mãe tinha o papel de conversar sobre tudo com os filhos. Era uma encantadora poderosa, estudiosa da mente, então era a mais indicada a aconselhar sobre as agruras da vida. Maryanne nunca se interessou em saber da vida de Aldred e vice versa. Porém, aquela aproximação inédita até então, provocou um efeito curioso. Aldred sentiu a vontade para conversar.
E conversaram. A madrugada inteira. Aldred falou de suas histórias e descobriu que ela havia se tornado uma heroína, uma aventureira. Havia treinado secretamente com Satoshi, aquele velho pilantra, todas as técnicas do estilo Yamada-ryuu de uma vertente diferente. Aprendeu sobre Ahlen, Gorsengred, Prado Verde, Vectora e seus colegas aventureiros, Millyan, Valvadis, Leonhard, Seiber, Nadinah, Pelleas, Zidane e John Lessard, o cavaleiro.
Aldred
Esse cavaleiro... então, você e ele? Maryanne, não sabia que curtia os tipos certinhos malas.
Maryanne
Não seja idiota, não aconteceu nada demais... além disso, ele foi embora há um tempo.
E então, ambos olharam para a lareira, onde a criança subitamente estava deitada em frente, com um olhar tranquilo.
Rainha Eterna
É a sina dos meus dois mais proeminentes descendentes terem azar no amor.
Os irmãos trocaram olhares e confirmaram que viam a mesma menina dos cabelos dourados e olhos cor do céu. A Rainha amaldiçoara a ambos.
Maryanne
Não é hora de crianças estarem dormindo?
A Rainha suspirou virando o rosto para o lado.
Rainha Eterna
Não sou uma criança, respeite minha secularidade.
Aldred deu uma risada seca.
Aldred
Vai ver tu tá certa mesmo. Quando te contei da minha investida contra os tapistanos, não mencionei o mais importante: eu havia conhecido o amor da minha vida.
***
Bem antes, começo de 1411.
Fenyra Hagar era natural de Tollon, o Reino da Madeira. Povo sisudo, trabalhador e obstinado e ela era exatamente assim. Num reino onde mulheres sofriam com a opressão masculina, ela se sobressaiu ao aprender artes marciais com uma amazona da floresta, aprendendo segredos antigos de um clã extinto. Se tornou aventureira e com alguns grupos, enfrentava os minotauros e outras ameaças ao povo comum do oeste de Arton.
Aldred a conhecera em Malpetrim, durante a reunião de heróis da Guilda de Aventureiros de Valkaria, terminada em plena confusão e cadeia. A noite começara com uma dança amigável e terminou na cadeia. Foi assim que ele e os Vingadores de Arton acabaram se esbarrando com Lucien e com uma trama complexa que envolvera até mesmo Nekapeth, o poderoso antigo sumo-sacerdote de Sszzaas.
Os dois acabaram se reencontrando em Malpetrim novamente, muitos meses depois, por obra do acaso, em uma briga de taverna. Um halfling provocara um grupo de minotauros que tentaram tirar satisfação usando de intimidação... mas encontraram um sono tranquilo nos punhos de Aldred e Fenyra.
Fenyra
Não precisava de ajuda.
Aldred
Eu ajudei o rapazinho...
E a partir deste contato, os dois acabaram formando um grupo com outros indivíduos e partiram para auxiliar grupos rebeldes por todo o território do Império de Tauron. Faziam ataques a carregamento de armas em Petrynia para distribui-las aos rebeldes, escoltaram uma caravana de adoradores de Nimb que pregariam contra Tauron em Fortuna, combateram orcs e postos corruptos de minotauros em Lomatubar, atacaram leilões de escravos e ajudaram em suas fugas em Tollon. Fizeram parte de reuniões secretas incitando a liberdade em porões de cidades, em clareiras nas florestas e junto a piratas do Mar Negro.
O amor entre eles surgiu naturalmente, pela comunhão dos interesses e da visão de mundo. Aldred e Fenyra se tornaram unha e carne, sempre juntos em todos os lugares, se ajudando, se completando até mesmo na luta. Um tempo depois, não se aventuravam mais com outras pessoas que queriam sair da rotina de rebeldia e serem aventureiros heroicos de masmorras. Fenyra e Aldred continuaram sozinhos em suas atividades. A luta contra o Império de Tauron era mais importante que o heroísmo egoísta dos rastejantes de masmorras.
Até que Aldred um dia demonstrou desejo também de descansar. Fenyra não queria parar nunca. O gênio difícil da artista marcial, sua maneira metódica de ver a vida contrastava com a leveza e desleixo do lutador. Brigas começavam a se tornar constantes, tendo a personalidade diferente de ambos como pano de fundo. Isso tudo, aliado ao fato dos dois perceberem não estarem conquistando muitas vitórias contra os minotauros, piorou bastante a relação dos dois.
Aldred
Não adianta essa merda toda. A gente tá há meses nessa e nada muda. Nada vai mudar e você sabe o por quê. Nós somos apenas dois, eles são um império! Nossas vitórias são vazias, duram alguns dias, quiçá uma semana e eles retomam tudo. Não vamos mudar nada com nossos punhos, sem mudar a estrutura de poder de Tapista.
Fenyra
Você quer apenas desistir. Eu notei que você se acomodou muito, faz tudo no automático. E agora está usando isso de desculpa, de muleta para voltar pra Valkaria e voltar à sua vida de diletante.
Aldred
Talvez eu queira mesmo, pois vejo que sou inútil aqui. Não fazemos diferença.
Uma ventania abriu as janelas quebrando a madeira, derrubando a cadeira e afastando o pesado baú da cama. Era uma manifestação dos poderes de Fenyra, que controlava o ar.
Fenyra
Pode ser! Mas salvamos vidas diariamente e pra essas pessoas, faz diferença. Eu quero ficar e continuar meu trabalho, mesmo que não consiga fazer meu nome ser gravado nos anais da história como você sempre quis. Isso não me interessa. Eu quero é ajudar o povo a lutar contra os minotauros.
Disse rubra.
E nada mais foi dito. Aldred só não partiu imediatamente porque havia pago a estalagem e eles precisavam ficar uns dias afastados para evitarem chamar atenção demais dos legionários que ocupavam aquela vila.
***
Volta, primeiros dias de 1412.
Rainha Eterna
Foi uma lástima. Fenyra era uma boa candidata.
Aldred revirou os olhos sem paciência para as palavras sem sentido da criança. Maryanne ponderou com o dedo nos lábios.
Maryanne
Então, vai parar também?
A Rainha esboçou uma expressão de ultraje, como se estivesse sendo ofendida.
Aldred
Talvez. Eu tenho já vinte e cinco anos, faço vinte e seis no meio do ano. Se eu parar por muito tempo, daqui a pouco tenho trinta e aí já viu.
Maryanne assentiu. Ela havia "pendurado a chuan", sua arma tamuraniana, fazia dois anos. Estava feliz tocando e cantando em pequenas apresentações na Baixa Vila de Lena. Sua decisão de parar de se aventurar trouxe profunda tristeza à Rainha Eterna, que necessitava dos esforços combinados dos irmãos para recuperar seus poderes até sua plena forma. Como Aldred estava se pondo a prova praticamente todos os dias por dois anos, acabou suprindo a necessidade de Maryanne desenvolver seus poderes.
Aldred
E Satoshi? Onde está aquele velho?
Era estranho para Aldred perguntar à sua irmã sobre seu mestre. Tinha que se acostumar à ideia de que ele fora mestre dela também. Maryanne deu de ombros.
Maryanne
Eu o procurei por um tempo, mas havia sumido. Um dia invadi sua casa e descobri pistas... acho que retornou para Tamu-ra. Ou não.
E sorriu. Não era verdadeiramente preocupante que sumisse, pois apesar de ter bastante idade, Satoshi era um aventureiro tão poderoso quanto seus pais. A Rainha Eterna chamou atenção dos dois para si, batendo o pé descalço no chão com força.
Rainha Eterna
Você não pode parar, descendente. Ela, tudo bem parar, pois já cumpriu o que me prometeu. Mas você não, você prometeu me trazer de volta à minha antiga forma.
Maryanne ergueu a sobrancelha. Não gostou de ser tão facilmente descartada, mas nada disse. Sua relação com a criança nunca foi tão boa quanto aparentava ser com Aldred.
Aldred
Eu não vou parar. Mas vou descansar por um ano, ou dois. Relaxa que antes dos meus trinta anos tu volta ao normal, pirralha.
Aldred bagunçou os cabelos da menina, já se acostumando com aquela nova altura de quem aparentava ter doze anos. Era estanho pensar que há dois anos ela era uma mulher mais alta que ele, exuberante e poderosa.
***
Começo de 1412.
Houve o aniversário de Aldred II, o ginete. Um bolo de chocolate, alguns convidados famosos como Arkam Braço Metálico e outros antigos companheiros de aventura do namalkahniano, como o eremita João e a espiã Jun. Therese, sua esposa, fez um de seus discursos emocionados sobre como Aldred era um homem completo e importante para o mundo. Seu filho, Aldred III, sentiu-se tocado.
Ser um herói aventureiro era mais do que uma vocação ou um simples divertimento. Era praticamente um dever para com o povo artoniano. Por em uso suas habilidades para ajudar e proteger as pessoas comuns. Decidiu que não ficaria para trás por muito tempo, que não penduraria sua katana, e procuraria logo alguma taverna atrás de quem precisasse de ajuda.
Porém, demorou ainda algumas semanas para Aldred definitivamente sair de casa. Estava ainda deprimido pelo término com Fenyra e até mesmo evitou contato com Jihad que morava em Valkaria. Ladon era fácil evitar, pois sempre foi alguém distante e discreto. Saiu apenas uma ou duas vezes com o feiticeiro para falar bobagens, nunca lhe contando sobre Fenyra, pois sabia como o qareen podia ser expansivo.
***
Segundo mês de 1412.
Semanas depois, acolchoado em seu quarto e com seus livros, Aldred quase se entregou à comodidade do conforto de seu lar. Foi quando sua irmã apareceu na porta de seu quarto jogando um pergaminho enrolado para ele.
Maryanne
Tem a marca dos Deepforge. Se não me engano, pode ser do seu amigo Fargrimm.
Aldred deu um salto da cama. O anão não mandaria uma carta para uma "reunião de amigos". Provavelmente era algo sério. Aldred leu voraz. Na verdade, tentou, pois o anão conseguia ser tão chato e burocrático escrevendo quanto falando. Impressionante. Aldred sorriu abertamente.
Aldred
Caralho, vamos reunir os Vingadores. Putaquepariu, é isso. Eu vou voltar à ativa. É HOJE, porra.
Estava tão eufórico que amassou a carta. Maryanne o olhava com um meio sorriso, abraçada em si mesma, recostada na porta.
Aldred
Hã... quer vir comigo? Queria ver como está sua técnica e...
Maryanne
Não, eu tô bem.
Aldred
Sério mesmo? Vai ser legal. Eu acho que não teremos o Ash, Ladon é um cara meio feio, Fargrimm é um anão e Jihad é casado, mas...
Ela deu uma risada e um soco no ombro de Aldred.
Maryanne
Não tô precisando não viu. Saiba que eu tenho contato com o Protetorado do Reino. Allieny veio até mim ontem a noite, sabia? Queria que eu participasse de uma missão para a coroa.
Aldred arregalou os olhos. Aquilo era impressionante mesmo.
Maryanne
Mas recusei. Ainda não tô pronta.
Seu semblante logo ficou entristecido. Aldred entendia. Ela vivenciou coisas bem traumáticas. A abraçou.
Aldred
Vai passar. E quando acontecer, me procure. Os Maedoc tem que ficar juntos.
Lhe deu um beijo na testa. Ela o abraço mais forte, enterrando o rosto em seu peito.
No mesmo, sorridente, o jovem Aldred tirou a katana do suporte, sentindo o peso da arma. Foram semanas sem sequer tocar em sua arma, a qual praticamente se tornara parte de seu braço. Colocou outra camisa com o emblema dos Yamada, vestiu sua jaqueta e pôs um óculos escuros, presente de seu pai.
Aldred
É hora de ir, Atrevido.
O cavalo relinchou como se entendesse e eles partiram para casa de Jihad...
... para não encontrá-lo.
Aldred
Que caralho. Putaquepariu, Jihad, seu corno. Como se atreve...
Ash havia desistido de ser um herói, mas os Vingadores de Arton sobreviveria sem ele. Aldred sempre o achou mole demais para a vida de agruras da estrada. Era melhor e mais seguro que se aposentasse mesmo. Mas ficar sem Jihad significava que os Vingadores não poderiam existir. Não com esse nome. Restava Ladon e esse era fácil de encontrar.
No mesmo dia, já estava na Arena Imperial e não foi difícil achá-lo. Ladon estava um pouco diferente, com algumas marcas a mais. Mesmo já o conhecendo e viajando junto por tanto tempo, era impossível ignorar o sentimento de estranheza aberrante que emanava dele. Aldred o viu, titubeou, mas o abraçou com força, o homem um palmo maior que ele.
Aldred
Quanto tempo, Ladão, seu malandrão. Como anda essa força aí, cara. Tu parece bem, anda malhando? Hahaha.
E assim, ambos partiram para Villent.
***
Villent, segundo mês de 1412.
A dupla do que restou dos Vingadores de Arton chegou à grande cidade. Aldred se impressionou um pouco, mas não tanto. Ele era um amante da cidade de Valkaria, quase um bairrista. Então, se aproximaram da região das mansões, um pouco antes dos castelos erguidos em uma região mais elevada. Aldred estava tentando não ficar de mau humor pela chuva que havia tornado sua jaqueta ensopada e o fez ter que guardar os óculos na mochila, com risco de quebrá-lo.
Aldred
Como falei com você nesses últimos dias, Vingadores de Arton já era. Ficou na história, então, para um novo nome... que tal "Liga da Justiça Artoniana"? Precisamos de um mágico e um cantor que saiba lutar. E de repente um druida para ajudar o Fargrimm, né, coitado. Cura não é bem com ele. Além disso, um druida pode cuidar dos cavalos.
Aldred desmontou de Atrevido e fez um afago nele antes de se aproximar dos anões de barbas negras, em frente ao portão da mansão que os dois deviam ir.
Aldred
Boa tarde, meus camaradas anões. Eu sou Aldred Castell Maedoc, o Terceiro de meu nome e este é Ladon Brimstone. Recebemos esta carta do mestre Fargrimm Deepforge e queremos atender seu chamado para ajudar os Goldenheart.
Disse fazendo uma mesura respeitosa aos guardas. Eram meros guardas, mas anões, sabia bem Aldred, eram muito polidos e davam muito valor à educação formal.
A aventura, enfim, começava.